sábado, 17 de maio de 2014

Unimultiplicidade social

Breve esclarecimento: em 2013, minha então professora de Produção Textual, senhorita Marlise Klug, propôs à turma o desenvolvimento de um artigo personalizado acerca do livro "A menina que veio de longe", da escritora Andrea Ilha. À época, por sermos o último ano de Ensino Médio pelo antigo curriculum e, consequentemente, os últimos a ter a disciplina de Produção Textual, ela sugeriu a criação de um livro, concretamente um e-book, no qual se reunisse todos os artigos dos alunos de ambos os terceiros anos. Na ocasião eu lhe pedi que não publicasse o meu artigo junto aos demais, pois eu o julgava inferior em relação aos trabalhos que eu já havia apresentado a ela anteriormente. Fui atendido. Hoje, no entanto, tive certa saudade de minha turma. Rememorando meu terceiro ano, esse mesmo artigo me ocorreu como um dos dois trabalhos mais desafiadores durante todo o curso. Ele, de certa forma, marca o início da evolução do pensar, isto é, assinala o começo da exigência de um pensar mais complexo, mais amplo... Embora eu ainda não goste muito do que tenha composto, resolvi publicá-lo pelo valor simbólico que ora adota. O outro trabalho desafiador que tive, por mais que eu deseje, não poderei publicar: trata-se de um artigo de Sociologia sobre as múltiplas consequências da Revolução Industrial; eu o compus inteiramente a manuscrito e a professora Rosa jamais me devolveu - e eu não guardei qualquer cópia.
17/05/2014.
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Unimultiplicidade social

Resumo: o presente objeto de estudos visa apresentar uma modesta e pouco aprofundada análise dos elementos que constituem a formação social dos indivíduos e o comportamento destes ante as estruturas historicamente desenvolvidas da sociedade, embasando-se, para tanto, na obra “A menina que veio de longe”, de autoria de Andréa Ilha, e na composição musical “Terra de Gigantes”, do outrora vocalista da consagrada banda gaúcha “Engenheiros do Hawaii”, Humberto Gessinger. Notar-se-á que, a influência familiar e os modelos comportamentais impostos pelo corpo social afetam extensamente não apenas o comportamento do indivíduo, mas também a forma como ele se auto-representa.


O ser humano está longe de ser um elemento simples de compreender: trata-se de um organismo profundamente complexo, tanto biológica quanto filosoficamente. Do momento em que nasce ao que morre experimenta diversas influências e busca, a cada uma delas, situar-se no espaço e no tempo: saber quem é; o que pode ser; o que almeja para si e, sobretudo, sobressair-se às expectativas muitas vezes tanto mais do mundo do que propriamente suas. Contudo, para que o indivíduo seja capaz de lidar com tais questões, surgidas naturalmente em certo momento de sua existência, precisa, a priori, de uma bem estruturada relação familiar, pois é no seio da família onde ele terá suas primeiras influenciações, as quais determinarão ferrenhamente o modo como ele irá relacionar-se futuramente com os seus semelhantes. Além disso, outro fator determinante à capacidade do indivíduo em viver é sua a sua habilidade de relacionar-se com as mudanças e as vicissitudes da vida. Nem sempre é fácil compreender que para evolucionar é preciso partir das zonas de conforto e dedicar-se a experiências novas, tampouco que não se pode sempre controlar a tudo. E é justamente essa inabilidade em lidar com as frustrações e com as adversidades o que compromete, muitas vezes, a interação social, pois é justamente com os erros, com os fracassos, com vieses do acaso que se obtém a aprendizagem e o conhecimento necessários à compreensão das “mil maneiras como sofrem e pensam as pessoas”. Compreensão esta fundamental para que se viva harmoniosamente dentro da estrutura social, por que do contrário passa a viver-se como que em ilhas e, como todo bom personagem literário ilhado, a enlouquecer-se lucidamente.


Parte I: do livro e sua análise

“A menina que veio de longe”, livro de estreia da escritora Andréa Ilha, conta a história de uma jovem menina vítima do abandono afetivo familiar e que sofre com o vício de seus pais, bem como com as mudanças frequentes em sua vida.

É inegável o papel da família à constituição moral, intelectual, afetiva e social dos indivíduos. Quando as relações familiares são tumultuadas ou escassas é comum, segundo psicólogos, que as crianças desenvolvam um comportamento menos sociável e uma grande carência afetiva, tal como é o caso da protagonista, expresso nas seguintes passagens: “[...] Dulce se viu plantada na frente de toda turma, sozinha, assustada. […] como é que conseguiria se apresentar? [...]” / “[...] achava que nunca teria novos amigos naquela escola [...]” / […] Tudo estava muito confuso para Dulce! […] estava se sentindo muito mal e muito só. Chorava tanto! Queria que os pais estivessem aqui, apenas para dar um beijinho de aniversário! [...]”. Em longo prazo, quando não sanados os possíveis traumas de infância por tais fatores ocasionados, é de se supor a formação de adultos emocionalmente ou mesmo psicologicamente comprometidos.

Em função disso, estudos contemporâneos indicam que o alcoolismo, da mesma forma que o vício em outras drogas – lícitas ou não – está associado, dentre outros fatores, mais diretamente a questões emocionais que abrangem desde o trato familiar ao social. No livro, os pais de Dulce utilizavam-se da bebida como um “facilitador” da realidade: “[...] Pai... bebe não […]” / “Mas, ô, filhota... Como eu vou suportar? O pai precisa de alguma coisa para não sentir essa dor [...]”. Além disso, ambos os progenitores possuíam histórico de relações familiares conturbadas. Com o tempo e a assiduidade o vício engessou-se de maneira que lhes foi a ruína última – não muito divergente da realidade que se vê noticiada amiúde.

Ademais, viver e conviver, tanto em família quanto em sociedade, exige de cada indivíduo uma grande flexibilidade e sensibilidade para lidar com as adversidades e imprevistos que se podem suceder, bem como certa estabilidade emocional, como salienta o trecho: […] “Querida, tu não pode ser assim! Não é bacana repreender os amigos desse jeito”/ […] / “Eu te entendo, querida, e até concordo que devemos ser sinceros com os nossos amigos. Mas, tu estás conhecendo ela agora! Tente ser mais paciente [...]” . É importante que se saiba como e quando exprimir um juízo. Deve-se saber compreender as divergências e as particularidades de cada um, adaptar-se tanto aos indivíduos quanto aos contextos, compreender a “uni-multiplicidade” da humanidade. Desta forma desenvolve-se não somente o trato social como também a habilidade de se lidar com as vicissitudes.

Desta forma, compreende-se que as relações familiares, sobretudo durante a infância, são determinantes para a formação emocional e psicológica dos indivíduos e, por conseguinte, a maneira como este irá relacionar-se com o mundo quando adulto. Se o ambiente onde a criança cresce for instável e participação dos pais defectiva, é muito provável que a mesma siga esse modelo de ser, ou ainda que não tenha um pleno desenvolvimento das competências sociais, vindo mais tarde a compensar suas carências nalgum vício – mais comumente em drogas, sejam lícitas ou não. Em função de tal desestrutura, alguns psicólogos apontam que bom percentual dos indivíduos busca acomodar-se em qualquer condição, desde que ela proporcione o alívio de seus medos; assim, muitos temem mudanças e frustações, não conseguem lidar com esse tipo de evento, o que acarreta não serem capazes de adquirir conhecimento de mundo, de mudarem com as vicissitudes e viverem em sociedade. Porquanto, infere-se o papel nucelar indelével da família face à sociedade, e desta última para com cada membro seu no sentido de tornar a existência um prazer e não um flagelo.

Parte II: da música “Terra de gigantes” e sua análise

Hoje, mais que nunca, vivemos em um mundo de gigantes da indústria, da Arte, do intelectualismo, da religiosidade e de diversos outros segmentos sociais. E, como é de se supor, quem não for tão grande deve tomar o cuidado de não ser esmagado e buscar crescer logo ou ao menos encontrar uma forma de subsistir em sua pequenez. Desta forma, nossos dilemas pessoais – ainda que tão universais – fazem-se irrelevantes aos grandes, de modo que a transição de uma fase da vida para outra, as crescentes exigências da sociedade e o processo de amadurecimento do pensamento geram um sentimento de solidão e irrelevância a quem desponta para o mundo adulto.

 Enquanto somos infantes o mundo nos é uma nova fantástica – e a recíproca é verdadeira. Os livros e os adultos nos permeiam de sonhos e valores de forma tal que somos induzidos à crença de uma realidade ideal, onde vemos o mundo com simplicidade e sabemos tudo o que queremos ter e ser. Todavia, esta fase um dia expira e logo principiam as insatisfações, como se percebe no eu-lírico: “[...] eu tenho uma guitarra elétrica / durante muito tempo isso foi tudo / que eu queria ter. [...]”. Surge, então, a necessidade de novos desafios e também da contemplação mais profunda da realidade.

Desta forma dá-se, gradativamente, o processo de evolução da complexidade do pensar, o qual pode apresentar-se complicado e mesmo sofrido para muitos, como parece ser o caso do eu-lírico: “[...] Mas, hey mãe! / Alguma coisa ficou pra trás / Antigamente eu sabia exatamente o que fazer [...]”. É nesse período que medos e incertezas avultam-se ao passo que passamos a observar o mundo mais diverso, mais profundo e complexo com tantas possibilidades e variáveis que nos fogem do alcance. Tentamos elencar, assimilar tudo isso, mas por vezes a bagagem cognitiva ainda é pouca para tanto, de forma que se principia a perceber a complexidade da existência e sentirmo-nos não mais tão “ímpares” e seguros, e sim confusos e incertos abrindo caminho às questões de cunho existencialista.

Não obstante ter de lidar com tantos dilemas pessoais – e tão comuns à humanidade – como o é o amadurecimento, os processos de formação, a escolha de uma profissão, a busca pelo emprego sonhado etc., tem-se ainda de digladiar com as arcaicas e mesquinhas estruturas ideológicas sociais onde o que vale é o produto de um processo e não o processo em si, de maneira que o indivíduo é tratado como mercadoria em função de sua força de trabalho: “[...] nessa terra de gigantes / que trocam vidas por diamantes [...]”. Nesse contexto, o indivíduo passa sentir-se só no mundo, preso a “uma ilha a milhas e milhas de qualquer lugar”; abandonado enquanto ser “bio-psico-social” e percebido apenas como um objeto necessário, tal como uma mera e inanimada engrenagem ao funcionamento das estruturas econômicas.

Portanto, compreende-se que, hodierno, nossas sociedades tão modernas exigem que cada vez mais cedo os jovens abandonem os sonhos e utopias que toda infância dita saudável proporciona e que deveriam, segundo um sentimento arraigado à alma do mundo, nortear a formação da têmpera do ser humano ideal, ainda que passível de falhas. Impuseram-se tantos padrões e exigências, tantos modelos de ser, ter e agir que a idiossincrasia, a humanidade de cada um ser vai sendo olvidada e, para que se atenda a tantas demandas, está-se a viver em uma eterna correria que nos faz antecipar tudo, de modo que, ao invés de viver-se cada fase da existência profundamente – e quedar-se ao cabo naturalmente preparado à próxima –, pretende-se fazer de cada dia o último e nele viver toda uma vida sem jamais pensar no amanhã. Nessa insanidade de morte, de desprezar o esplendor da existência, nem mesmo que se dispusesse da eternidade haveria tempo bastante. Porquanto se precisa saborear melhor a vida e viver mais profundamente e não velozmente, pois como já disseram “o tempo não para” e nem tudo é fabricável ou comercializável, a exemplo da felicidade.

Considerações finais

Viver é interagir com mudanças, adequar-se a situações e evoluir através da aprendizagem com os erros e as dificuldades. No mundo de hoje os jovens, sobretudo, não-raro veem-se lidando com problemas como o desemprego, o abandono e as mudanças que a vida e a sociedade exigem.

Desde muito cedo somos alertados sobre a necessidade de evoluirmos intelectualmente, socialmente; falam-nos das mudanças e de sua benfazeja existência. Ocorre que nem sempre estas mudanças são bem-vindas ou desejadas; por vezes nos acomodamos em um contexto e nos recusamos a abandoná-lo. No geral ansiamos por um porvir esplêndido, mas tememos as incertezas e o não sermos capazes de lidar com elas.

O desemprego, por exemplo, é um dos principais temores de muitos brasileiros, preponderantemente dos jovens que estão ingressando no mercado laboral, repletos de metas e sonhos. A autonomia financeira dignifica, uma vez que seja assaz degradante a condição de pedinte, dependente da boa vontade alheia ou de parentes.

Em tais contextos, onde o jovem ou mesmo o adulto encontra-se à mercê de outrem, podem ocorrer situações de abandono, deixando o indivíduo em uma situação ainda mais desesperadora. O abandono familiar, expresso muitas vezes na falta de compreensão e apoio dos familiares, quando aliado ao menoscabo social, muitas vezes manifestado pela inobservância das qualidades e aptidões em detrimento de outros aspectos supérfluos e/ou imorais, tais como a predileção fundamentada em aparências e bajulações, pode apontar para um quadro depressivo ou de desesperanças, bem como corroborar com problemas sociais.

Desta forma, temos que a sociedade e a própria vida exigem de nós uma imensa maleabilidade e capacidade de adequação ao ambiente, tal como um camaleão capaz de camuflar-se, e assim proteger-se garantindo sua subsistência, em qualquer meio. Contudo, por mais que nos preparemos às mudanças, sempre teremos de conviver com medos e incertezas, de maneira ou outra; assim, precisamos evitar os “acomodadores”, como diz Paulo Coelho, e seguirmo-nos aprimorando, pois somente podemos – e precisamos dessa certeza única – contar com as nossas capacidades e conhecimentos, com nós mesmos... Dos demais devemos cobrar apenas uma atitude friamente racional em relação as nossas qualidades e ações, uma contemplação do mérito, tão-somente. Afinal, como diz Malba Tahan: “o homem só vale pelo que sabe”...

Referências
ILHA, Andréa. “A menina que veio de longe”. 1ª ed. São Paulo: All Print Editora, 2012. 79 p.
IstoÉ, 07 de maio 2008, p. 21;

IstoÉ, 04 de novembro 2013,

SciELO: A Scientific Electronic Library Online.

Psicoterapêutico

VARELLA, Dráuzio.  “Dependência química”.
< http://drauziovarella.com.br/dependencia-quimica/dependencia-quimica/

SCHNORRENBERGER, Andréa S. “A família e a dependência química: uma análise do contexto familiar”. Florianópolis: UFSC, Centro Sócio Econômico,

Departamento de serviço social. Fevereiro de 2003.
< http://tcc.bu.ufsc.br/Ssocial288588.PDF>

Qualidade Simples

Oncomédica: ajudando pessoas a vencer desafios.

Resiliência.
< http://pt.wikipedia.org/wiki/Resili%C3%AAncia_(psicologia)>

“Engenheiros do Hawaii”: “Terra de Gigantes”, composição de Humberto Gessinger.
< http://letras.mus.br/engenheiros-do-hawaii/12906/>

Ana Carolina: “Unimultiplicidade”, composição de Tom Zé

Hopcraft; Hopcraft; Flint; Janszen; Germain. “Duma”. [Filme-vídeo]. Produção de Carol Cawthra Hopcraft, Xan Hopcraft, Carol Flint, Karen Janszen, Karen Janszen, Mark St. Germain. EUA: Warner Bros, 2005. 1 DVD, 100 min. color. son.

WEST, Morris. “As Sandálias do Pescador”. --. Rio de Janeiro: Distribuidora Record de servicios de impensa, S.A., 1963. 264 p.

COELHO, Paulo. “O Zahir”. --. Rio de Janeiro: Rocco, 2005. 316 p. 


***

ANEXOS



I “Terra de Gigantes”
Compositor: Humberto Gessinger


Hey mãe!
Eu tenho uma guitarra elétrica
Durante muito tempo isso foi tudo
Que eu queria ter

Mas, hey mãe!
Alguma coisa ficou pra trás
Antigamente eu sabia exatamente o que fazer

Hey mãe!
Tem uns amigos tocando comigo
Eles são legais, além do mais,
Não querem nem saber
Que agora, lá fora
O mundo todo é uma ilha
A milhas e milhas
De qualquer lugar

Nessa terra de gigantes
Que trocam vidas por diamantes
A juventude é uma banda
Numa propaganda de refrigerantes

Hey mãe!
Já não esquento a cabeça
Durante muito tempo
Isso foi só o que eu podia fazer
Mas, hey mãe!
Por mais que a gente cresça
Há sempre alguma coisa que a gente
Não consegue entender

Por isso, mãe
Só me acorda quando o sol tiver se posto
Eu não quero ver meu rosto
Antes de anoitecer
Pois agora lá fora,
Todo mundo é uma ilha
A milhas, e milhas, e milhas...

Nessa terra de gigantes
Que trocam vidas por diamantes
A juventude é uma banda
Numa propaganda de refrigerantes

Mega, ultra, hiper, micro, baixas calorias,
Kilowats, gigabites
Traço de audiência
Tração nas quatro rodas
E eu, o que faço com esses números?
Eu, o que faço com esses números?

Nessa terra de gigantes
Eu sei, já ouvimos, tudo isso antes
A juventude é uma banda
Numa propaganda de refrigerantes

Hey mãe.....hey mãe



II “Unimultiplicidade”
Compositor: Tom Zé

Neste Brasil corrupção
pontapé bundão
puto saco de mau cheiro
do Acre ao Rio de Janeiro
Neste país de manda-chuvas
cheio de mãos e luvas
tem sempre alguém se dando bem
de São Paulo a Belém
Eu pego meu violão de guerra
pra responder essa sujeira
E como começo de caminho
quero a unimultiplicidade
onde cada homem é sozinho
a casa da humanidade
Não tenho nada na cabeça
a não ser o céu
não tenho nada por sapato
a não ser o passo
Neste país de pouca renda
senhoras costurando
pela injustiça vão rezando
da Bahia ao Espírito Santo
Brasília tem suas estradas
mas eu navego é noutras águas
E como começo de caminho
quero a unimultiplicidade
onde cada homem é sozinho
a casa da humanidade.



Farias, M.S.: "Unimultiplicidade social". Maio de 2014. http://livredialogo.blogspot.com.br/
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