quinta-feira, 1 de agosto de 2013

Almas Mastigadas

É curioso como a vida pode ser caprichosa e o destino um contrário às nossas vontades, aos desejos mais vívidos da alma pura a que se pode chamar humana; tão típica da juventude... Os fatos que vou narrar me pesam n’alma há décadas, suportei-os o quanto pude, mas o fim trágico de um amigo tão próximo em dias recentes foi o limite. Não espere uma história alegre, heroica, de amores sofridos e com um final feliz. Se for isso o que você espera, largue esta missiva imediatamente e vá ler um conto de fadas.

Em 1950 quando estava no Ginásio conheci meu melhor amigo, o tipo de cara sonhador, rebelde, bem ao estilo em voga na década de ’50, quando começou a surgir o rock-and-roll. Cabelo comprido, calça jeans, jaqueta de couro, era assim que sempre o víamos na escola, matando aulas, com sua guitarra, interpretando as músicas populares, reunindo um magote de meninas à sua volta – graças a nossa amizade e a seu talento, sempre saíamos com as mais gatas de todo o campus. Não sei como nos tornamos amigos, eu era meio que o oposto, minha família era conservadora, não gostavam que andássemos juntos; eu gostava de estudar, embora às vezes matasse aula também.
Vicente, a peso de muita cola, conseguiu se formar com minha turma, deixando os professores e o diretor, que vivia de campana, bastante intrigados – e irritados. Enquanto eu fui logo para a faculdade, cursar jornalismo, ele conseguiu um emprego numa banda pouco conhecida, que tocava em bares aqui em New Hampshire. Nessa época nosso contato se escasseou. Eu arranjei uma namorada fixa – Elizabeth – que era linda, simplesmente perfeita: loira, de altura mediana, olhos azuis bastante brilhantes e inteligentes, pernas bem torneadas... tinha um corpão e tanto!, além de ser a primeira de sua classe de Direito. Vicente, todavia, saiu em turnê pelo estado, sua bandinha começava a fazer sucesso. Ele era um boêmio, nunca passava mais de uma semana com a mesma garota, vivia se metendo em confusão, lutando por um mundo ideal, se recusando a subordinar-se às regras da sociedade. Confesso que sempre tive um pouco de inveja, pois minha vida – salvo por Elizabeth – parecia cinza quando comparada a dele. Vicente sempre parecia feliz e próspero.
Em 1954, quando conclui a faculdade consegui um emprego como freelance do “Times”, ganhava bem e estava quase sendo efetivamente contratado. Elizabeth conseguira um emprego num escritório de advocacia bem conceituado e era ótima profissional. Nós nos casamos naquela primavera! Nossa como tudo era perfeito nessa época! Minha vida tinha matizes tão fascinantes que ao recordar nesse momento é impossível vetar o aperto no coração e a lágrima que insiste em insinuar-se pelos olhos e cair sobre o papel... Acho que com a idade vamos ficando piegas em excesso! Coisas de velho, por certo.
No verão de 1958, Elizabeth e eu ganhamos um presente dos céus: nosso primeiro filho, Christopher. Vicente ainda um amigo próximo, com a diferença que agora o era da família, foi convidado a ser padrinho de batizado. Nesse tempo eu e minha esposa havíamos mudado bastante: amadurecemos, arcamos com as responsabilidades de um lar e da vida em sociedade; Vicente, por outro lado, parecia o mesmo adolescente rebelde que conheci no Ginásio, só que mais velho um pouco. 
Tudo ia muito bem. Mas foi no inverno de 1960 que veio aquela maldita carta! Aquela maldita... Foi como se me tivessem arrancado as pernas, me tivessem desmembrado e apunhalado o peito com uma adaga cega, frente a frente. Quando recordo aquela maldita correspondência timbrada pelo governo meu ódio eclode e tenho vontade de... de... ah, de que adianta dizer?! Sou um velho impotente, cuja alma foi estraçalhada por um pedaço de papel. Em vista do que ocorreu a Vicente sou o homem mais feliz da Terra! A carta dizia que o país estava em guerra, que os Estado Unidos da América me convocava para lutar em seu nome, que era minha patriótica obrigação lutar pelos interesses da nação. Pelos interesses da nação! Seria melhor dizer pelos interesses de alguns poucos, que fazem a guerra à custa da vida alheia; homens que se dizem autoridade, mas que nunca saíram de uma sala cômoda, enquanto gente inocente morre em seu nome... Droga! A briga não é minha! Esses idiotas que declararam guerra... eles que fiquem com a sua guerra, que morram por ela, mas que me deixem em paz; não tenho nada com isso, só quero ficar ao lado de minha família. Que nada!
Fui para o Vietnã. Vicente também havia sido convocado, tentou fugir, mas foi obrigado a ir. Armados com fuzis, granadas e facas fomos ao campo de batalha. A experiência de matar é algo negro. Quando se tira a vida de outra pessoa é como se a sua alma também morresse, o fogo da vida fica gelado em seu corpo, é como se te arremessassem em um buraco negro... É horrível. Naquele dia, para salvar nossas vidas precisamos atirar. Matamos dez inimigos... e o que mais me consome: não deveriam ter mais de vinte anos. Eram jovens! Crianças que não tiveram oportunidade de gozar a vida! Crianças dando a vida por nada... Não durmo a noite. Não consigo. Essas lembranças me atormentam. Fecho os olhos e ainda vejo, cinquenta e três anos depois, corpos caídos por todo lado, pessoas mutiladas; dedos, pernas mãos e braços rasgados, mutilados... Gente assassinada de toda forma: baleadas; degoladas; explodidas em pedaços; vítimas de infecções dolorosas... É tétrico! Ainda vejo as crianças naquele vilarejo. Ah, meu Deus, as crianças! Não pudemos fazer nada!...
Vicente, depois do episódio das crianças, não foi mais a campo, pois eles o julgaram mais útil na enfermaria... Quando eu o vi, seu brilho havia sumido, seus olhos eram vagos, como se fitassem a escuridão do cosmos. Eu quase enlouqueci, não sei como Vicente não surtou. Fui ferido num combate e tirei uma semana delirando na base hospitalar. Minha situação piorou e o comando decidiu que eu seria enviado para um hospital, junto a outros cinco graves feridos. Vicente se facultou para nos acompanhar até um hospital na Austrália, onde seríamos internados.
Até hoje não sei como, mas o comando decidiu que não retornaríamos para o Vietnã; pelo que fiquei sabendo eles alegaram que nosso estado psicológico e físico era perigoso e, portanto, éramos inúteis como combatentes. Nós, cerca de 20 soldados, ficamos quase sete meses na Austrália aguardando navio militar para voltar à América. Depois de dois meses internado, eu estava fisicamente muito bem.
Como estávamos fora de combate, aproveitamos a estada em Melbourne, isto é, escapávamos às vezes para caminhar à noite – nenhum de nós tinha condições de dormir; não me peçam descrição do porquê, é demais até para narrar... Eu troquei algumas correspondências com Elizabeth, fiquei sabendo sobre Christopher, agora com 11 anos: ele era um bom aluno, aprendeu a jogar basebol com o tio e o primo – com o tio... Comigo é que ele deveria aprender a jogar, eu que sou o pai! A guerra roubou-me até mesmo os momentos da vida de meu filho em que eu deveria e desejava estar presente...
Vicente, como todos nós, teve de passar por regulares visitas a um psicólogo do exército. Aos poucos ele voltou a tocar guitarra – havia comprado uma enquanto estávamos lá, com o dinheiro de ajuda-de-custo que recebíamos enquanto aguardávamos a carona de regresso. Todavia, não mais tocava músicas alegres e, quando o fazia, sem aquela emoção, sem aquela alegria, aquela vitalidade de antes, que eu via-lhe nos tempos de escola. Ora, parecia orbitar em torno de outro planeta, inabitado, sombrio, distante milênios-luz da Terra, num recôndito e obscuro ponto do universo, de seu universo interior, de sua psique...
Faltavam dois meses para irmos embora, Vicente havia se apaixonado por uma enfermeira do consultório psiquiátrico. Uma moça muita elegante, cabelos ruivos, um pouco mais baixa que ele, tinha os olhos castanhos cor de mel, enfim, muito bela. Apesar de tudo o que passamos, notei que pela primeira vez meu amigo de longa data estava amando: ele estava, pela primeira vez, preso a uma só mulher. Sabem, dizem que o amor tudo cura, duvido, há coisas que nem o amor e o tempo são capazes de apagar, mas, seja como for, esse enlace fez bem a Vicente, embora seus fantasmas ainda o atormentassem constantemente.
Então veio a ordem: embarcar! Não teve jeito, todos nós tivemos de regressar à América, noivo ou não de uma australiana. Ele prometeu à Emily que assim que se estabelece em New Hampshire e resolvesse seus assuntos com o governo voltaria para buscá-la.
Depois que nós chegamos, eu regressei à minha família, morto de saudade; Vicente tratou de resolver sua situação com o governo, tão logo o pode. Todos nós recebíamos uma boa soma todo mês, como indenização, ou seja lá o que for, pela nossa estada no Vietnã e tudo pelo que passamos.
Passou-se um ano desde que voltei aos braços de minha esposa e ao carinho de meu filho – que tive de conquistar, afinal, ver um homem pela “primeira” vez em sua vida e lhe dizerem: “este é seu pai” não deve ser algo fácil, e não é; foi uma reaproximação complicada.
Meu casamento quase se findou nesse ano. Elizabeth foi uma mulher impecável e muito pacienciosa. Manteve-se fiel, todos aqueles anos e, ainda foi capaz de manter-se unida e complacente a um homem sem alma. Perdi as contas de quantas vezes acordei alucinado no meio da noite, gritando, lutando; quantas vezes saí correndo, inconsciente, rua a fora disparando do inimigo, até que percebesse estar em casa. Certa vez, durante uma passeata, alguém soltou um rojão. Quando dei por mim estava com uma faca na mão, segurando um rapaz de cerca de vinte e dois anos, falando coisas sem sentindo. Passei uma semana no sanatório por força da lei. Voltei ao lar, sobre forte medicação. Meu pós-guerra foi um inferno. Demorei dois ou três anos para melhorar um pouco, mas ainda não consigo dormir e quando consigo acordo assustado e demoro a reconhecer onde estou.
Vicente, embora seus sofrimentos particulares – que nunca me contou – trabalhou feito um louco, juntou dinheiro, comprou uma linda casa, preparou tudo e foi buscar sua amada. Chegou à Austrália, desceu correndo do barco, chegou à casa de Emily, decepcionou-se com ela não sair a recebê-lo, chegou a pensar: “que houve? Terá desistido de mim? Sou o que o pude ser. Lutei para construir um lar para nós...”, mas foi fulminado pela notícia: ela morrera. Morrera de saudades suas, chorando de tristeza, pensado ter sido abandonada, afinal, passara-se um ano e pouco desde que ele lhe prometera voltar.
Vicente retornou para cá. Seu estado psicológico piorou, ele não tinha mais por quem lutar, perdeu seu norte, sua luz no fim do túnel. Sentia-se culpado pela morte de Emily, as lembranças do Vietnã o assombravam cada vez mais. Ele enlouqueceu, passou quase dez anos em uma clínica de tratamento.
Eu retomei minha vida. À medida do possível tentei viver normalmente com minha família. Os anos que passei longe de Elizabeth e Christopher, os anos que perdi de suas companhias, de estar em suas vidas me doeram para sempre, é um tempo perdido, roubado de mim covardemente, que jamais conseguirei recuperar; mais uma ferida dolorosa que nunca sanarei.
Quando Vicente saiu da clínica, eu fiz questão de que ele viesse morar conosco. Orgulhoso ele recusou-se, mas concordou em morar mais próximo, assim, eu podia amparar-lhe caso necessário – eu já conseguia me controlar mais, ter minha família de volta ajudou.
Em 1997, Vicente simplesmente sumiu. Foi-se embora, deixando apenas um recado: “não posso mais ser um peso em sua vida e na de sua esposa. Diga a meu afilhado que o amo. Estou bem, não se preocupe”.  Confiei e fiz o que ele me pediu, não coloquei a polícia em sua busca, até porque, eu não tinha como justificar uma procura desse tipo, os laudos clínicos o diziam “em condições de viver sozinho e em sociedade”.
Há 13 anos, em 2000, perdi minha amada esposa. Elizabeth foi vítima de um infarto silencioso, no meio de uma Missa Dominical na catedral. Todos nós tentamos socorrê-la, o resgate chegou rápido, mas já era inútil. Só restou-me meu filho, agora com 42 anos, um homem feito, chefe de família e, claro, meus dois netos: Rebecca e Hank. Foi insuportável ver aquele caixão preto descer pela terra e ser por ela coberto. Perdi mais uma pessoa amada, a pessoa com quem escolhi dividir a vida. Perdi a mulher de minha vida.
Meu filho tem sua própria família, os tempos hoje são outros... Também, não o posso culpar, tanto tempo que passei longe dele, quando ele mais precisava de uma figura paterna... Não foi por que eu quis, mas aconteceu. Depois de um surto, no meio da noite, meu filho e sua esposa – que após o funeral me haviam levado para morar com eles – decidiram que seria melhor que eu fosse morar num lar para “veteranos de guerra”. “É melhor para o senhor e para as crianças”, diziam eles. Eu fui.
Ontem recebi uma notícia horrível: Vicente teve uma crise muito séria, culpava-se pela morte de Emily, dizia-se uma pessoa terrível, um monstro. Seus fantasmas da guerra o consumiam vivo, ou antes, mastigavam, cuspiam e voltavam a mastigar tortuosamente o que restara de sua alma. Acharam seu corpo, erguido trinta centímetros do chão, por uma corda ao redor do pescoço, presa ao caibro de um quarto, numa pensãozinha barata de beira de estrada. Junto estava uma carta, endereçada ao senhor Wallets, David Wallets. A polícia, alguns meses depois de findar as investigações, a entregou-me, esclarecendo os fatos. O conteúdo da carta de Vicente Lancaster não é da conta de vocês, basta que saibam que se trata de linhas depressivas, obscuras, alucinadas; narrativas tão horrendas que somente um combatente que viu o que vimos seria capaz de ler até o fim, sem se traumatizar.
Saiba que eu era muito feliz, até 1960. Dessa data em diante minha alma foi rasgada, como uma folha de papel, lenta e dolorosamente em tiras fininhas, uma a uma, por uma criatura monstruosa, sem face, que parecia sentir prazer em torturar-me. Perdi a vida que poderia ter sido a vida dos sonhos de qualquer homem! Perdi a felicidade, perdi a alma naqueles campos... Desde que Elizabeth morreu meus fantasmas vêm me atormentar a todo o momento. Não aguento mais... Deveria seguir o exemplo de Vicente e acabar com isto agora mesmo! Mas um fragmento remanescente do que julgo ser minha alma me impede, pois não quero que meus netos ouçam dizer: “seu avô paterno foi um louco, um sujeito completamente pirado, um covarde que acabou se matando”.
Não sei quanto tempo tenho de vida. Há algumas semanas venho sentindo fortes dores no peito e tossido um pouco de sangue. Nada contei a ninguém. Já basta de lutar. Que essa doença, seja lá o que for, me consuma de uma vez por todas e ponha fim a este sofrimento. Só espero que ao chegar frente ao tribunal celestial Deus tenha pena de mim e do que tive de fazer naquele Vietnã, mas ainda assim, trocaria os céus apenas pelo prazer de ver arder no inferno para sempre os malditos homens que fizeram aquela guerra e me obrigaram a servir ao exército, os covardes que impõe a obrigatoriedade de um serviço militar, apenas para terem sangue novo a derramar gratuitamente em seus nomes e de seus pérfidos interesses, mascarados de patriotismo.
Talvez seja esta minha última noite na Terra, não queria partir sem deixar registro da crueldade dos ditos “humanos”, daqueles cuja alma já se corrompeu, aqueles que amam a guerra. Os mesmos monstros que destruíram minha vida e das pessoas que eu amava – minha amada esposa Elizabeth, meu amado filho Christopher, meus pais a cujo velório eu não pude ir... Meu melhor amigo, assassinado, ainda que ele tenha puxado contra si o gatilho...
Espero que a história – infeliz – de minha vida tenha algum valor, algum peso no futuro e que vidas inocentes sejam poupadas. Que homens velhos parem de criar guerras para jovens morrerem. Que cada um lute apenas em nome de seus sonhos mais alegres, pela sua felicidade e pelo seu sucesso.

David Wallets
Idaho, 30 de agosto de 2013.

Nota:
David faleceu em 29 de agosto de 2013. Quando não desceu para tomar café, os enfermeiros subiram até seu quarto. Morreu dormindo. Sendo o único filho, recebi todos os seus pertences. Sinto-me mal de tê-lo abandonado. Mandei publicar em todos os jornais e revistas, blogs e sites que pude esta carta, a fim de fazer saber sua história e sua mensagem. Não sabem vocês o quanto me arrependo de tê-lo exilado... 
Christopher Wallets. 


Farias, M. S.: "Almas Mastigadas". Agosto de 2013.  http://livredialogo.blogspot.com.br/
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