quarta-feira, 19 de dezembro de 2018

Os lírios da praça


Resultado de imagem para líriosOlho para o relógio em meu pulso esquerdo: são 16h. A praça está relativamente movimentada: as gentes passam ora sozinhas, ora em duplas ou em grupos. Conversam, murmuram, algumas se exclamam sozinhas. Um senhor de terno parece com pressa: caminha em direção ao estacionamento nas imediações como que por um corredor, alheio às árvores, aos outros transeuntes. Pelos seus trejeitos, o homem trabalha em algum dos prédios ali perto, e seu dia deve estar findando – seu afã deve ser o do lar, da poltrona preferida, nas vestes casuais, dos assuntos sem técnica.
Penso comigo: quem dera pudesse estar em casa, de pantufas, ao invés de aqui, esperando a próxima aula! Tomo minha bolsa e retiro a agenda: a semana vai ser corrida! Duas provas, três trabalhos, um relatório... Guardo a agenda novamente, fecho a pasta. Curioso como no ócio não descansamos: pensamos no quanto estaremos ocupados e cansados!
Em algum lugar, do outro lado da praça ou em suas imediações, ouço música, contrastando com o som das águas do chafariz a alguns metros. Um grupo de adolescente sentado sobre a grama – alguém tocando um violão, meio sem jeito, enquanto outro enche o chimarrão, ao tempo que os demais ensaiam qualquer letra.
As árvores imponentes e bem copadas, embora espaçadas, mantêm o local sombreado; o chão é de um verde exímio. Não fossem os caminhos de pedra, calcinada pela chuva e o trânsito, este lugar seria inteiramente coberto pelo tapete de relva.
Esse quadrado de cantos arredondados parece desafiar a selva de pedras, impondo-se justo em seu coração. É grande demais para ser um jardim, mas insignificante perto da floresta que há muitas centúrias tenha sido. Assim, como recebe vagos cuidados gerais de jardinagem, tanto mais para moldá-lo que para mimá-lo, chamamos esse recorte de vida vegetal de praça.
O vento sopra agradável e, consigo muito tenuamente, traz leve aroma... É-me familiar! Cerro os olhos por instante em busca de identificá-lo: lírios! O aroma é de lírios! No instante em que me ocorre, assomam-se as lembranças de há muito: à luz pálida das memórias infantes, vejo uma pequerrucha muito à vontade, estendendo a uma senhorinha, muito sorridente, de mãos enrugadas, cabelos brancos e um largo sorriso dourado, um lírio áureo que acabara de furtar do jardim.
Abro os olhos. Não se passaram além de segundos, enquanto viajei por mais de uma década em minhas memórias. Olho à minha volta em busca dos lírios. Não muito longe distingo um ponto lilás, contrastando vivamente com o verde natural do lugar e as cores sintéticas que adornam as construções de cimento. Recolho minha pasta, levanto-me e me dirijo até lá.
É lindo! Olhando-o tão de perto, os lírios, que ao longe pareciam-me um ponto lilás são, em realidade, adornados por outros tons mais suaves em meio à folhagem de um verde mais escuro. Rio comigo mesmo: se Proust pode sentir o sabor do passado numa madelaine amolecida em chá, porque não posso eu sentir o aroma do passado num pé de lírios? Ao menos eu não pretendo levar quatorze anos escrevendo sobre minha epifania!
Atrevo-me e colho, com delicadeza, uma flor. Dirijo-me ao ponto de ônibus, rumo ao campus, levando comigo não um lírio, mas um doce aroma de passado, brindado por um amável sorriso dourado que me irradia o coração.
Entre o homem que corre com os ponteiros do relógio e os adolescentes que ignoram o tempo, o que afinal apropriamos e legamos se não memórias?

Vellar, C. M. "Os lírios da praça". Novembro de 2018. http://livredialogo.blogspot.com.br/Esta obra está licenciada sob uma Licença Creative Commons Attribution-NonCommercial-NoDerivs 3.0 Unported. Deve ser citada conforme especificado acima.
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domingo, 16 de dezembro de 2018

A moça e o rio

Desenhos da Joana.
Boas tardes senhorita,
Aí sentada baixo esse velho carvalho,
Que tem estas águas negras que lhe prendem o olhar?


Têm lonjuras...
São negras as águas como é o leito do rio.
Da nascente, clara e límpida ela parte.
O caminho a faz forte, mas também a muda...


Mas as águas dos olhos seus caem cristalinas,
Sobre as faces coradas, desafiando os contornos dos lábios carmesins.
Não está aí o processo inverso?


Com efeito, brotam aos cântaros de um coração enegrecido,
Passam pela alma, leito alvo, que lhe extrai o bem.
E do mal que resta, vertem aos olhos à terra.
Essa mesma terra que faz geminar tudo quando lhe ousa entranhar.


Se assim o é, tal como as águas do rio,
Deve a alma mais forte ficar.

Na terra fenecem todas as coisas, boas e más,
Para mais tarde brotarem as belas flores – e as árvores imponentes. 


Assim também o coração, se ora enegrecido, deve nutrir-se
Para, como a terra, permitir brotar as rosas de um novo amor!



Vellar, C. M. "A moça e o rio". Novembro de 2018. http://livredialogo.blogspot.com.br/
Esta obra está licenciada sob uma Licença Creative Commons Attribution-NonCommercial-NoDerivs 3.0 Unported. Deve ser citada conforme especificado acima.

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