quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

Resenha analítica de o "Inventário de valores organizacionais"


TAMAYO, Álvaro; MENDES, Ana Magnólia; DA PAZ, Maria das Graças. Inventário de valores organizacionais. Psicologia, UnB, Brasília, DF, 2000, 27 p.

A produtividade de uma empresa está associada a diversos fatores compreendidos em sua Cultura Organizacional, a qual adota por base um conjunto de valores que regem o quotidiano da organização. Contudo, a existência de diferentes modelos mentais implica compreensões distintas de tais valores pelos indivíduos, podendo causar incompatibilidades e conflitos danosos à empresa e a seus funcionários. Nesse sentido, a Psicologia Organizacional, hodierno, dedica grande atenção à supracitada cultura, empenhando-se em construir modelos estratégicos, sobretudo na área de recursos humanos, que permitam atender com maior eficiência e eficácia as necessidades sócio-institucionais relacionadas à sobrevivência e bem-estar das organizações.

Os pesquisadores adotaram três conjuntos de perspectivas bipolares para representar os valores organizacionais: (a) autonomia versus conservadorismo, (b) hierarquia versus igualitarismo, (c) domínio versus harmonia. Um instrumento composto por 36 itens foi aplicado a uma amostra de 1.010 empregados, com idade média de 38,82 anos, de ambos os sexos, provenientes de cinco organizações do Distrito Federal, os quais se voluntariaram para o estudo. 12% dos participantes ocupavam cargos de gerência. A abordagem proposta consistia em estudar os valores organizacionais a partir da percepção que os empregados têm dos valores existentes e praticados na sua empresa.

Cada empresa possui um determinado perfil – algumas mais mecanicistas, outras com sistemas mais orgânicos. Mesmo nos diversos departamentos de uma mesma organização podem existir diferentes climas de trabalho, rotinas, costumes, usos, valores etc., que são determinantes para o desempenho de cada empregado, à sua satisfação no trabalho e, consequentemente, à produtividade da empresa.
Uma organização é constituída não propriamente pelos seus componentes físicos, e sim pelo seu próprio funcionamento, isto é, “a função dita à forma”: cada tarefa, cada cargo pressupõe um papel a ser desempenhado pelo funcionário, criando assim expectativas de comportamento que acabam por se converter em exigências, as quais sendo valorizadas e compartilhadas pelo grupo tornam-se valores inerentes à função – um bom exemplo é imaginarmos um servidor que cuida da manutenção terminar o expediente e ir até o bar frente à organização tomar um copo de cachaça, um fato sem qualquer relevância, mas, por outro lado, se esse servidor for o presidente dessa organização instantaneamente repercutirá.
Isso ocorre porque todo membro é capaz de desenvolver uma visão mais ou menos clara dos papeis e dos valores que predominam em sua organização e essa visão, certa ou errada, orienta o seu comportamento. Daí a importância dos valores na elaboração dos perfis culturais das organizações: eles são o alicerce; os valores funcionam como padrões para o julgamento e a justificação do comportamento de si e dos outros.
A forma como o indivíduo percebe e se relaciona com a realidade organizacional constitui o aspecto cognitivo fundamental através do qual ele desenvolve as suas crenças acerca dos múltiplos aspectos da vida organizacional. Em geral, os valores em uma organização expressam os interesses e os desejos de alguém – o fundador, o dono, o presidente –, ou de um grupo de membros da empresa, afigurando-se como uma consciência mais ou menos clara das metas organizacionais.
Cada cultura organizacional pressupõe, também, certa hierarquia de valores, a fim de evitar a dissonância dos diferentes modelos mentais existentes entre os componentes da organização. Cada indivíduo possui um entendimento subjetivo do mundo real, e esse entendimento age sobre a sua forma de perceber os valores da organização, o que, por sua vez, poderá causar incompatibilidades e conflitos com colegas e mesmo com os gerentes acerca, por exemplo, da execução das tarefas. Isso ocorre, fundamentalmente, porque a percepção do grau de importância daquilo que será considerado primário ou secundário será relativo à hierarquia dos valores e à representação mental da organização que o indivíduo cria.
Desta forma, tal como as sociedades e os indivíduos, as organizações se deparam com exigências universais que devem ser satisfeitas para garantir a sua sobrevivência, criando, como resposta, padrões de comportamento e valores que orientem a sua vida quotidiana.
Assim, os valores são capazes de aliar os empregados em relação a um objetivo, fazendo com que permaneçam dentro da estratégia, desempenhando seus papeis adequadamente. Neste sentido, os valores constituem-se no delineamento da estrutura da organização, pois eles caracterizarão a maneira de pensar, agir e mesmo de sentir dos funcionários, definindo o quotidiano, a vida na empresa. As próprias normas são uma espécie de instrumentalização desses valores, formas de “estimular”, ou melhor, determinar padrões de comportamento.
O inventário de valores constatou que no Brasil, à exceção da perspectiva “hierarquia versus igualitarismo”, os valores associados a todas as outras conseguem coexistir no ambiente organizacional.

De fato, não são poucos os casos de que se encontra registro em fontes confiáveis, na internet, de ações judiciais envolvendo demissões relacionadas a conflitos entre empregados e chefias com termos como “incompatibilidade de gênio”, ou reclamações no sentindo de limitação da iniciativa e desprestígio do indivíduo. São diversas as queixas e a terminologia, mas todos compartem de um mesmo princípio: a divergência de valores. Esses conflitos são bastante perniciosos à organização, pois afetam a produtividade e demandam custos, quer seja com o processo de demissão, quer seja com o processo de seleção de novos funcionários. Destarde faz-se imperioso que as organizações reservem maior atenção ao desenvolvimento de um perfil cultural organizacional alinhado aos valores ligados ao bom desempenho de suas atividades, considerando certa margem para a subjetividade dos membros: é preciso papeis, normas, subsistemas organizacionais e estratégias de trabalho bem definidos e claros. Como inferido pelo Inventário, há no Brasil uma particularidade muito profícua: a maioria das perspectivas tradicionalmente conflitantes consegue coexistir de forma saudável, proporcionando ambientes de trabalho satisfatórios à empresa e aos empregados. A compreensão de suas próprias culturas também permite à organização estabelecer um melhor relacionamento com o meio natural e social no qual está inserta, além de maior precisão na identificação da necessidade de mudança, onde e como, da mesma forma que as causas de resistência à mudança.

O artigo é um material bastante interessante, embora um tanto complexo, para ser estudado com tempo e profundidade, pois permite inúmeras inferências sobre o quão importante é o papel dos valores pessoais e culturais em relação à organização, como também os valores da própria, relacionados à sua natureza, missão e objetivos. Possui um alto valor pedagógico ao salientar a complexidade das relações humanas e institucionais. Permite, ainda, aos acadêmicos e gestores, avaliarem os tipos motivacionais em dois níveis diferentes – o dos valores reais, ou seja, aqueles que na percepção dos empregados são realmente praticados na empresa, e os desejados, que designa o grau de importância ou prioridade que os empregados gostariam que fosse dada a cada um dos valores apresentados.

Álvaro Tamayo, doutor em Psicologia Social pela Université de Louvain, Bélgica, é professor titular da Universidade de Brasília; Ana Magnólia Mendes, é doutora em Psicologia Organizacional pela Universidade de Brasília, é professora adjunta da Universidade de Brasília; Maria das Graças T. Da Paz, doutora em Psicologia Organizacional pela Universidade de Brasília, é diretoria do Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília.

Farias, M. S. "Resenha analítica de o 'Inventário de valores organizacionais'". Dezembro de 2014. http://livredialogo.blogspot.com.br/
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domingo, 23 de novembro de 2014

Aos leitores do DL

    Este ano o blog teve pouquíssimas atualizações e, em decorrência, significativa queda de visualizações/acessos. O motivo de tão pouco se ter publicado é que a equipe se desfez. Desfez-se, porém, por um bom motivo: todos nós concluímos o Ensino Médio e seguimos caminhos distintos no Ensino Superior. Alguns fazem Letras, outros Administração - todos em Universidades diferentes. As responsabilidades com a Faculdade tomaram a maior parcela do tempo que antes dispúnhamos. O pouco tempo que ainda resta, alguns antigos colaboradores decidiram dedicar aos blogs individuais, que sugiram da partição neste. 
    Espero que, nos próximos meses, eu consiga voltar a publicar, ao menos aquilo que foi produzido à Faculdade - e também que novos colaboradores surjam! 

- Farias, M.S. 

domingo, 3 de agosto de 2014

Errar é fácil. Assumir o erro? Só depois de ter certeza!

Defender falsas verdades é algo que julgo intolerável do momento em diante que tomamos ciência da inveracidade do fato. Ontem eu compartilhei a imagem ao lado, de uma das páginas que sigo no Facebook, com meus amigos e, na ocasião, defendi a resposta 288 para a notação. Minha inferência fundamentava-se na ordem natural de resolução das operações algébricas e no sentido convencional de resolução das expressões numéricas, que é da esquerda para a direita. Momento depois que divulguei a informação, um amigo chamou-me no bate-papo e alertou que meu cálculo estava incorreto. Discutimos por mais de 6 horas sobre a correta interpretação e resolução do problema. A notação 48/2(9+3) é, a princípio, ambígua e permite que seja interpretada como uma fração de 48 sobre 2(9+3), que resultaria em 2, como também pode ser entendida como uma fração de 48 sobre 2, multiplicando (9+3), ou ainda poderia ser escrita - como fizeram muitos usuários nos comentários da publicação original - fazendo-se uma conversão da seguinte forma: 48*(1/2)*12, que geraria uma multiplicação de frações cujo resultado seria, indubitavelmente, 288. No entanto, o resultado correto é 2. Não por que seja um caso óbvio de 48/2*12 => 48/24 = 2. Se fosse isso, não teríamos gasto tantas horas numa discussão que seria irrelevante - mesmo por que, se fosse assim, ainda estaríamos discutindo, uma vez que não há uma propriedade ou regra que justifique resolver a multiplicação primeiro em 48/2*12, depois que o parênteses já fora eliminado, tampouco há qualquer embasamento para a interpretação de que seja uma fração de 48 sobre 2(9+3).
O que há é uma propriedade matemática chamada de "Propriedade Distributiva da Multiplicação em Relação à Adição", segundo a qual "a multiplicação de um número por uma soma é igual a soma dos produtos deste número por cada uma das parcelas". Essa informação não apenas pôs fim à ambiguidade de interpretações, como também eliminou as contradições que havíamos enfrentado em relação aos princípios de resolução das expressões numéricas e das operações algébricas. Desse modo, a resolução da notação 48/2(9+3) é:
x = 48 / (2*9 + 2*3)
x = 48 / (18 + 6)
x = 48 / 24
x = 2

Ninguém gosta de errar, mas não há aprendizagem sem erros e acertos, afinal, aprender é mudar. E assim também fez-se a resolução correta - a calculadora do Google.com, e suponho que assim também proceda o Excell e algumas calculadoras científicas, transforma a notação 48/2(9+3) em (48/2)*(9+3), o que leva corretamente ao resultado 288, mas ao isolar o 48/2 com parênteses, esse software adultera a notação e sua lógica, pois 48/2(9+3) é diferente de (48/2)*(9+3); inclusive a Casio e a Texas possuem duas linhas de calculadoras, cada qual, que apresentam resultados diferentes para esse mesmo problema, veja as imagens abaixo. 


























Farias, M.S.



Referências:

http://www.matematicadidatica.com.br/PropriedadesAdicaoMultiplicacaoReal.aspx
http://www.profcardy.com/cardicas/ordem-das-operacoes-aritmeticas-e-algebricas.php
http://universodasexatas.blogspot.com.br/2013/02/qual-resolver-primeiro-multiplicacao.html
http://pt.slideshare.net/netlopes1/48293
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ordem_de_operações
http://knowyourmeme.com/memes/48293
https://answers.yahoo.com/question/index?qid=20110412090801AAcW8wq
http://www.calculobasico.com.br/como-se-resolve-uma-expressao-numerica/

sábado, 21 de junho de 2014

Dogmatismo e Ceticismo

Introdução
Imagem da internet.

O que é conhecer? Poder-se-ia dizer que o conhecimento são as informações que assimilamos sobre determinado objeto ou fato; mas o conhecimento em si é também um processo, pois para que possamos conhecer precisamos investigar aquilo que se faz objeto. No processo de investigação criamos uma imagem mental em forma de opinião, ideia ou conceito daquilo que pretendemos dominar.
Naturalmente, nesse processo, podem surgir conhecimentos conflitantes acerca da natureza de um mesmo objeto e, nesse sentido, questiona-se o que realmente podemos conhecer, isto é, se somos capazes de um conhecimento pleno, de chegarmos à verdade sobre determinada coisa.
Pois que, para alguns filósofos é possível que cheguemos, sim, à verdade, que possamos de fato conhecer; são estes os defensores do dogmatismo. Em oposição, argumentam os defensores do cepticismo, que é impossível obter a verdade sobre qualquer coisa, existindo apenas a possibilidade de que algo seja verdadeiro; para estes, duas ideias contraditórias são, igualmente, tão certas quanto erradas.


Dogmatismo

O dogmatismo é, essencialmente, a corrente ideológica que defende podermos chegar até a verdade suma de algo. O Dogmatismo filosófico pode ser visto como uma doutrina fundamentada em princípios, através dos quais se chega à verdade, sem, contudo, haver a necessidade de submeter, em qualquer momento do processo de conhecimento, as conclusões ou insumos à crítica ou validação de qualquer espécie.
Mas o que implica dizermos a “certeza absoluta”? Significa que a percepção, concepção e entendimento sobre algo é único para todo aquele que o contemplar, não existindo, portanto, outra forma de conceber este mesmo objeto.
É interessante notar que até aqui não há a problematização do processo de conhecimento; este se dá de maneira natural, espontânea de cada um. Não se faz presente a dúvida sobre o conceito daquilo que estamos aprendendo.
Sempre que aceitamos sem reservas determinada opinião, estamos adotando um conhecimento dogmático. Na História possuímos exemplos políticos disto: Hitler, na Alemanha, projetou a ideia de que a raça ariana pura era superior a qualquer outra e que, portanto, deveria eliminar os demais, além de pôr o mundo sobre uma plataforma política que ele cria ser ideal. Certamente, na construção deste pensamento, o führer utilizou-se de princípios através dos quais obteve tal conhecimento que, com seus argumentos, transmitiu a quase todos os seus compatriotas.
Também é exemplo de conhecimento dogmático o conhecimento que produzimos quando crianças: ao vermos, por exemplo, uma janela e entendemos que ela é o que aparenta ser, sem nos preocuparmos com o porquê, como ela foi feita, se todas as janelas são e sempre serão assim. Simplesmente aceitamos o fato sem questionamentos ou validações.
Ainda mais incisivo é o conhecimento dogmático imposto pelas religiões, onde Deus é o esclarecimento – a causa e o fim de tudo. Caso não se siga à risca as leis da igreja, isto é, os seus dogmas, então perecemos no pecamos e na punição, quiçá, eterna. A obrigatoriedade de acatar sem margem à dúvida as verdades da instituição religiosa torna-a detentora e aplicadora de um conhecimento puramente dogmático.
Nesta corrente filosófica afirma-se a relação entre sujeito e objeto do conhecimento, ainda que não exista critério avaliador dessa relação, tampouco há preocupação com a verdade existente no conhecimento produzido, ou ainda sua abrangência: ela é absoluta; os objetos são apresentados absolutamente tanto no campo da percepção quanto da cognição.
Resumidamente, no dogmatismo aceitamos o mundo da forma exatamente como o percebemos, sem aprofundamentos. Quando nos deparamos com algo extraordinário à reação que temos é de minimizá-lo aos padrões que dominamos. Por exemplo, na Idade Média explicavam-se os fenômenos da natureza – raios; relâmpagos; tempestades; pestes e o mais – como sendo simplesmente obra de entidades místicas.

Cepticismo
O cepticismo pode ser dito como a doutrina filosófica que prega a incapacidade da mente humana de chegar, com certeza plena, a alguma verdade geral ou especulativa.
Enquanto no dogmatismo o sujeito é capaz de apreender o objeto, no cepticismo ele tornar-se incapaz. Ou seja, o conhecimento real do objeto se faz impraticável ao cepticista, ao qual o saber sobre tal é mera abstração, ou antes, entendimento relativo de cada indivíduo; por tal pensamento, o céptico se incapacita de apreender o objeto, afinal, em seu modo de pensar, o que ele vê como uma xícara, por exemplo, pode ser o que outro entenda como um prato, sem que haja, necessariamente, o descarte de uma das concepções: ambas estão igualmente certas, logo, não há verdade geral, única, sobre o objeto, e sim verdades relativas.
Esta doutrina filosófica pode aplicar-se em caráter universal ou circunscrever-se a um campo específico, por exemplo, metafísico; religioso; ético, et reliqua.
O cepticismo pirroniano ou absoluto, prega que é impossível o sujeito conhecer verdadeiramente qualquer coisa, pois, segundo este, nós não somos capazes de desenvolver um entendimento intelectual do objeto. Desta forma, desaconselha que se tente avaliar, entender, comparar e tirar conclusões sobre as coisas.
O cepticismo mitigado, contudo, não estabelece a impossibilidade absoluta do conhecimento, porém como irrealizável a construção de um saber exato, de modo que não se pode afirmar, como no exemplo do segundo parágrafo, se um juízo é certo ou errado, mas apenas se ele é ou não verossímil.
No campo metafísico, esta doutrina nos diz que tudo aquilo que não é experimentável tornar-se incognoscível, portanto, devemos nos ater à experimentação, rechaçando as especulações. Por exemplo, Deus, a alma, o mundo espiritual não nos são sensíveis, tampouco acessíveis à capacidade humana de conhecer, de forma que sequer lhes podemos afirmar a existência.
Descartes no começo de seus estudos empregou um método a que denominou “Dúvida Metódica”, a qual consistia na crença de que o cepticismo é parte da inteligência humana essencialmente crítica e livre. O filósofo começa a pôr em dúvida a tudo, de forma a eliminar o falso e atingir o saber absolutamente verdadeiro.
Montaigne¹, no Renascimento, reformula um tanto a doutrina cepticista ao considerar a subjetividade de cada indivíduo, bem como a influência dos fatores sociais e culturais na construção das opiniões, conceitos e, assim, do próprio conhecimento.
É interessante destacar que, embora a crença sobre o homem ser intelectualmente incapaz de conhecer – a qual é essencialmente é uma contradição e um dos mais fortes argumentos contra o cepticismo absoluto, pois ao afirmar impossível o saber, já está por si expressando um conhecimento –, o cepticismo afirma a possibilidade de conhecer, ao passo que a coloca na dúvida, isto é, ao contrário do dogmatismo, esta doutrina problematiza a questão do conhecimento: preocupa-se com a epistemologia.

Considerações Finais
No introito argumentou-se sobre a validade do conhecimento, se somos ou não capazes, enquanto seres racionais, de obtermos a verdade absoluta. Obter a verdade plena implica em afirmarmos que o mundo é tal como o descrevemos, de forma que não existem outras possibilidades ou implicações para as coisas que já definimos: elas são tais como as vemos.
O dogmatismo, em sua mais pura, conduz a aceitação incondicional da verdade, sem a preocupação de verificarmos a sua coerência, sua amplitude, sua validade. Aqui o conhecimento não tem problematizações: conhecer é algo relativamente simples, pois se compreende e concebe o objeto de forma absoluta. É como que vermos uma tela de computador e avaliarmos que o monitor é apenas aquilo que estamos vendo, desconsiderando todas as peças, fios, circuitos e engrenagens que o constituem.
Nesta perspectiva dogmática, mais importa aquilo que pensa o indivíduo sobre o objeto do que realmente ele é.
O dogmatismo pode ser mais bem visto dentro das religiões – sobretudo na Idade Média -, onde Deus é sempre a explicação para tudo. Neste contexto, ao deparar-se com algo extraordinário, até então desconhecido e incompreendido, o sujeito acaba minimizando-o ao nível de seus conhecimentos os quais se baseiam em forças sobrenaturais.
O cepticismo, na contramão do dogmatismo, julga o intelecto humano incapaz. Menospreza as capacidades cognitivas deste a tal ponto de afirmar que não podemos conhecer a verdade, ou seja, de que não podemos saber nada, que verdade e mentira não existem; bem e mal, tampouco.
Segundo os cépticos mais radicais, deveria haver distinção entre o que é bom por natureza e aquilo que o homem entende como bom. Todavia, estes filósofos concluíram que na natureza não existem conceitos, que tais são meramente criações humanas, as quais se convencionam. Por essa reflexão, não somos capazes de desenvolver um entendimento intelectual do objeto por que na natureza tal não existe, logo não somos capazes de conhecê-lo, de maneira que se desaconselha a formulação de juízos sobre qualquer coisa, pois será relativo a cada um o saber – lembre-se do exemplo da xícara.
Felizmente, com o transcorrer do tempo, as filosofias e doutrinas, o conhecimento em si vai sendo aperfeiçoado, de modo que não se deve buscar classificar o dogmatismo e o cepticismo como doutrinas boas ou más, e sim concebê-los como partes integrantes do mecanismo de conhecimento.
Muitos dos maiores e mais importantes filósofos da antiguidade eram dogmáticos. Dentre estes está Platão, cuja definição clássica do conhecimento é hoje base para muitas teorias acerca de. Segundo o filósofo, o conhecimento se baseia na crença verdadeira e justificada. Na Filosofia o dogmatismo não tem uma confiança tão pura e ingênua na razão, pois existe a preocupação com verdade, de modo que se submete a aparência a uma analise crítica, contudo, ainda buscam-se absolutos. Aristóteles, também dogmático, divide o conhecimento em três áreas: científica, prática e técnica – divisões estas que utilizamos ainda hoje.
 O cepticismo, embora suas contradições aparentes, não pode ser desqualificado, pois ao plantar a dúvida dentre as concepções do indivíduo força-lhe à busca, ao aprofundamento de seus conhecimentos, de saciar suas inquietações, as quais, naturalmente, se avolumam de acordo a sua evolução espiritual.
O pai do Positivismo, Augusto Comte, defendia que o dogmatismo é parte natural da mente humana, por que o homem tem e sempre terá a necessidade de confiar, de crer em algo para viver – tanto o é que, embora crítico da metafísica e do conhecimento teologal, ideou a “Religião da Humanidade”. Defendia ainda que, o cepticismo deveria ser empregado como que uma ferramenta na passagem de uma crença a outra, quando conceitos e opiniões arcaicos entram em colapso, havendo a necessidade de suas mudanças.
Mas, afinal, o que vem a ser conhecer, se não o fato de procurarmos pôr ordem onde esta não exista, criando assim um padrão de realidade? O conhecimento é fruto da atividade intelectual, contemplando-lhe todo o processo e seus resultados; é ele um meio termo entre a crença e a verdade: é a “crença verdadeira e justificada”.




1. Michel Eyquem de Montaigne (1533-1592) foi um político, filósofo, escritor, cético e humanista francês, considerado como o inventor do ensaio pessoal.

Farias, M.S.: "Dogmatismo e Ceticismo". Junho de 2014. http://livredialogo.blogspot.com.br/
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Referências
*Ceticismo: In: BENTON, William. Enciclopédia Barsa. Rio de Janeiro, São Paulo: Encyclopedia Britannica Editores LTDA. 1964 – 1969; p.: 206b. Tomo 04.
*Chauí, Marilena. Iniciação à Filosofia. 1ª Ed. São Paulo: Ática, 2010. 376 p.
*Dogma e Dogmatismo: In: BENTON, William. Enciclopédia Barsa. Rio de Janeiro, São Paulo: Encyclopedia Britannica Editores LTDA. 1964 – 1969; p.: 215a. Tomo 05.
*http://br.answers.yahoo.com/question/index?qid=20070613205933AAsoD5w
*http://br.answers.yahoo.com/question/index?qid=20070622060027AAAejUv
*http://br.answers.yahoo.com/question/index?qid=20090330055447AA4zM4Z
*http://br.answers.yahoo.com/question/index?qid=20100112091135AADxAbc
*http://br.answers.yahoo.com/question/index?qid=20100916182750AACSY6H
*http://br.answers.yahoo.com/question/index?qid=20110219062821AA8HZNF
*http://dogmatismoxceticismo.blogspot.com.br/
*http://livredialogo.blogspot.com.br/2012/08/formas-de-conhecimento.html
*http://professorakaroline.blogspot.com.br/2012/05/2-ano-filosofia-dogmatismo-e-ceticismo.html
*http://pt.wikipedia.org/wiki/Ceticismo
*http://pt.wikipedia.org/wiki/Michel_de_Montaigne
*http://soniaa.arq.prof.ufsc.br/arq1001metodologiacinetificaaplicada/20063/Trabalhos/Leonora_Cristina_Silva/teoria.pdf
*http://umesbocofilosofico.blogspot.com.br/2011/05/do-dogmatismo-gnosiologico-e-ceticismo.html
*http://www.brasilescola.com/filosofia/conhecimento.htm
*http://www.estudopratico.com.br/ceticismo-e-dogmatismo-na-filosofia/
*https://sites.google.com/site/filosofiabaltar/a-filosofia-nas-aulas/tipos-de-cepticismo

quarta-feira, 21 de maio de 2014

O desabafo de uma médica brasileira.

- Hoje, enquanto me distraía pelas publicações de amigos, em minha conta pessoal no Facebook, eu me deparei com o texto que segue, supostamente escrito por uma médica brasileira. Digo supostamente por que não consegui "rastreá-lo" até a origem. Mas seja como for, quem o escreveu fê-lo com tanta sinceridade que me comoveu, de verdade. Dessa forma, mesmo sem conseguir entrar em contato com a autora referenciada e pedir-lhe permissão, eu o resolvi publicar aqui. Vale a pena lê-lo até o fim. Não é um escrito contentor de conteúdo político ou no qual se faça qualquer tipo de crítica partidária - absolutamente! Trata-se do mais sincero externar de "desabafo" do que parece ser um boa profissional.
- Farias, M.S.

O desabafo de uma médica brasileira.

"Dilma, deixa eu te falar uma coisa!
“Sou Fernanda Melo, médica, moradora e trabalhadora de Cabo Frio, cidade da baixada litorânea do estado do Rio de Janeiro.
“Este ano completo 7 anos de formada pela Universidade Federal Fluminense e desde então, por opção de vida, trabalho no interior. Inclusive hoje, não moro mais num grande centro. Já trabalhei em cada canto...
“Você não sabe o que eu já vi e vivi, não só como médica, mas como cidadã brasileira. Já tive que comprar remédio com meu dinheiro, porque a mãe da criança só tinha R$ 2,00 para comprar o pão.
“Por que comprei?
“Porque não tinha vaga no hospital para internar e eu já tinha usado todos os espaços possíveis (inclusive do corredor!) para internar os mais graves.
“Você sabe o que é puxadinho?
“Agora, já viu dentro de enfermaria? Pois é, eu já vi. E muitos. Sabe o que é mãe e filho dormirem na mesma maca porque simplesmente não havia espaço para sequer uma cadeira?
“Já viu macas tão grudadas, mas tão grudadas, que na hora da visita médica era necessário chamar um por um para o consultório porque era impossível transitar na enfermaria?
“Já trabalhei num local em que tive que autorizar que o familiar trouxesse comida ( não tinha, ora bolas!) e já trabalhei em outro que lotava na hora do lanche (diga-se refresco ralo com biscoito de péssima qualidade) que era distribuído aos que aguardavam na recepção.
“Já esperei 12 horas por um simples hemograma. Já perdi o paciente antes de conseguir um mera ultrassonografia. Já vi luva descartável ser reciclada. Já deixei de conseguir vaga em UTI pra doente grave porque eu não tinha um exame complementar que justificasse o pedido.
“Já fui ambuzando um prematuro de 1Kg (que óbvio, a mãe não tinha feito pré natal!) por 40 Km para vê-lo morrer na porta do hospital sem poder fazer nada. A ambulância não tinha nada...
“Tem mais, calma! Já tive que escolher direta ou indiretamente quem deveria viver. E morrer...
“Já ouvi muito desaforo de paciente, revoltando com tanto descaso e que na hora da raiva, desconta no médico, como eu, como meus colegas, na enfermeira, na recepcionista, no segurança, mas nunca em você.
“Já ouviu alguém dizer na tua cara: meu filho vai morrer e a culpa é tua? Não, né? E a culpa nem era minha, mas era tua, talvez. Ou do teu antecessor. Ou do antecessor dele...
“Já vi gente morrer! Óbvio, médico sempre vê gente morrendo, mas de apendicite, porque não tinha centro cirúrgico no lugar, nem ambulância pra transferir, nem vaga em outro hospital?
“Agonizando, de insuficiência respiratória, porque não tinha laringoscópio, não tinha tubo, não tinha respirador?
“De sepse, porque não tinha antibiótico, não tinha isolamento, não tinha UTI?
“A gente é preparado pra ver gente morrer, mas não nessas condições.
“Ah Dilma, você não sabe mesmo o que eu já vi! Mas deixa eu te falar uma coisa: trazer médico de Cuba, de Marte ou de qualquer outro lugar, não vai resolver nada!
“E você sabe bem disso.
“Só está tentado enrolar a gente com essa conversa fiada. É tanto descaso, tanta carência, tanto despreparo...
“As pessoas adoecem pela fome, pela sede, pela falta de saneamento e educação e quando procuram os hospitais, despejam em nós todas as suas frustrações, medos, incertezas...
“Mas às vezes eu não tenho luva e fio pra fazer uma sutura, o que dirá uma resposta para todo o seu sofrimento!
“O problema do interior não é falta de médico. É falta de estrutura, de interesse, de vergonha na cara. Na tua cara e dessa corja que te acompanha!
Não é só salário que a gente reivindica. Eu não quero ganhar muito num lugar que tenha que fingir que faço medicina. E acho que a maioria dos médicos brasileiros também não.
“Quer um conselho?
“Pare de falar besteira em rede nacional e admita: já deu pra vocês!
“Eu sei que na hora do desespero, a gente apela, mas vamos combinar, você abusou!
“Se você não sabe ser "presidenta", desculpe-me, mas eu sei ser médica, mas por conta da incompetência de vocês, não estou conseguindo exercer minha função com louvor!
“Não sei se isso vai chegar até você, mas já valeu pelo desabafo!".
Fernanda Melo.

Imagem extraída do "Google Imagens" e acrescentada à postagem pelo Diálogo Livre.

segunda-feira, 19 de maio de 2014

Vítimas ou cúmplices?

Olá, em um primeiro momento gostaria de me apresentar. Me chamo Janaina Melo, sou acadêmica do 1º semestre do curso de Jornalismo, na Universidade de Cruz Alta e sou nova por aqui. Em minha primeira publicação, viso abordar um assunto bastante discutido pelas pessoas e que dispõe de diversas maneiras de interpretação: A mídia e o seu amplo poder de manipulação.



Muitas pessoas, ao entrarem em contato com algum dos veículos de comunicação, questionam-se sobre o que está sendo veiculado, outras, no entanto, simplesmente ''absorvem'' o conteúdo, seguindo-o sem ao menos fazer o esforço de refletir a cerca. Algumas programações se dão de forma apelativa, e usam de ''artimanhas'' nem sempre corretas para cativar a atenção das pessoas, adquirindo cada vez mais audiência.
Um dos programas mais assistidos da televisão brasileira é o ''Brasil Urgente'', veiculado na Band e apresentado pelo bastante conhecido, Datena. O programa geralmente aborda questões polêmicas e crimes corriqueiros na sua programação, e o que é inegável é a capacidade do apresentador em persuadir os telespectadores para que assistam o programa até o final. O programa todo se desenvolve de forma apelativa e com um extremismo desnecessário. E então surge a pergunta: Os telespectadores persuadidos são vítimas até que ponto? A partir de que momento, tornam-se cúmplices da mídia sensacionalista?
Penso que, programas como este só ''sobrevivem'' no cenário da comunicação porque conquistaram um público fiel, que em hipótese alguma abandonam os Datenas e seus altos poderes de expressarem opiniões através de palavras muitas vezes grotescas e desnecessárias.
O comentário acima não é uma crítica direta ao programa Brasil Urgente, tampouco ao apresentador do mesmo, e sim um convite a reflexão. Proponho que as pessoas busquem uma informação mais livre de opiniões pessoais, para que possam ter a liberdade de formular sua própria opinião, sem interferência, sem influência.
Acho louvável a coragem de apresentadores como Datena e Raquel Sherazade em expor suas opiniões sem medo da represália, contudo, defendo a ideia de que cada pessoa é livre para pensar, sem influências.

       Janaína Melo: "Vítimas ou cúmplices?". Maio de 2014. http://livredialogo.blogspot.com.br/
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sábado, 17 de maio de 2014

Unimultiplicidade social

Breve esclarecimento: em 2013, minha então professora de Produção Textual, senhorita Marlise Klug, propôs à turma o desenvolvimento de um artigo personalizado acerca do livro "A menina que veio de longe", da escritora Andrea Ilha. À época, por sermos o último ano de Ensino Médio pelo antigo curriculum e, consequentemente, os últimos a ter a disciplina de Produção Textual, ela sugeriu a criação de um livro, concretamente um e-book, no qual se reunisse todos os artigos dos alunos de ambos os terceiros anos. Na ocasião eu lhe pedi que não publicasse o meu artigo junto aos demais, pois eu o julgava inferior em relação aos trabalhos que eu já havia apresentado a ela anteriormente. Fui atendido. Hoje, no entanto, tive certa saudade de minha turma. Rememorando meu terceiro ano, esse mesmo artigo me ocorreu como um dos dois trabalhos mais desafiadores durante todo o curso. Ele, de certa forma, marca o início da evolução do pensar, isto é, assinala o começo da exigência de um pensar mais complexo, mais amplo... Embora eu ainda não goste muito do que tenha composto, resolvi publicá-lo pelo valor simbólico que ora adota. O outro trabalho desafiador que tive, por mais que eu deseje, não poderei publicar: trata-se de um artigo de Sociologia sobre as múltiplas consequências da Revolução Industrial; eu o compus inteiramente a manuscrito e a professora Rosa jamais me devolveu - e eu não guardei qualquer cópia.
17/05/2014.
***
Unimultiplicidade social

Resumo: o presente objeto de estudos visa apresentar uma modesta e pouco aprofundada análise dos elementos que constituem a formação social dos indivíduos e o comportamento destes ante as estruturas historicamente desenvolvidas da sociedade, embasando-se, para tanto, na obra “A menina que veio de longe”, de autoria de Andréa Ilha, e na composição musical “Terra de Gigantes”, do outrora vocalista da consagrada banda gaúcha “Engenheiros do Hawaii”, Humberto Gessinger. Notar-se-á que, a influência familiar e os modelos comportamentais impostos pelo corpo social afetam extensamente não apenas o comportamento do indivíduo, mas também a forma como ele se auto-representa.


O ser humano está longe de ser um elemento simples de compreender: trata-se de um organismo profundamente complexo, tanto biológica quanto filosoficamente. Do momento em que nasce ao que morre experimenta diversas influências e busca, a cada uma delas, situar-se no espaço e no tempo: saber quem é; o que pode ser; o que almeja para si e, sobretudo, sobressair-se às expectativas muitas vezes tanto mais do mundo do que propriamente suas. Contudo, para que o indivíduo seja capaz de lidar com tais questões, surgidas naturalmente em certo momento de sua existência, precisa, a priori, de uma bem estruturada relação familiar, pois é no seio da família onde ele terá suas primeiras influenciações, as quais determinarão ferrenhamente o modo como ele irá relacionar-se futuramente com os seus semelhantes. Além disso, outro fator determinante à capacidade do indivíduo em viver é sua a sua habilidade de relacionar-se com as mudanças e as vicissitudes da vida. Nem sempre é fácil compreender que para evolucionar é preciso partir das zonas de conforto e dedicar-se a experiências novas, tampouco que não se pode sempre controlar a tudo. E é justamente essa inabilidade em lidar com as frustrações e com as adversidades o que compromete, muitas vezes, a interação social, pois é justamente com os erros, com os fracassos, com vieses do acaso que se obtém a aprendizagem e o conhecimento necessários à compreensão das “mil maneiras como sofrem e pensam as pessoas”. Compreensão esta fundamental para que se viva harmoniosamente dentro da estrutura social, por que do contrário passa a viver-se como que em ilhas e, como todo bom personagem literário ilhado, a enlouquecer-se lucidamente.


Parte I: do livro e sua análise

“A menina que veio de longe”, livro de estreia da escritora Andréa Ilha, conta a história de uma jovem menina vítima do abandono afetivo familiar e que sofre com o vício de seus pais, bem como com as mudanças frequentes em sua vida.

É inegável o papel da família à constituição moral, intelectual, afetiva e social dos indivíduos. Quando as relações familiares são tumultuadas ou escassas é comum, segundo psicólogos, que as crianças desenvolvam um comportamento menos sociável e uma grande carência afetiva, tal como é o caso da protagonista, expresso nas seguintes passagens: “[...] Dulce se viu plantada na frente de toda turma, sozinha, assustada. […] como é que conseguiria se apresentar? [...]” / “[...] achava que nunca teria novos amigos naquela escola [...]” / […] Tudo estava muito confuso para Dulce! […] estava se sentindo muito mal e muito só. Chorava tanto! Queria que os pais estivessem aqui, apenas para dar um beijinho de aniversário! [...]”. Em longo prazo, quando não sanados os possíveis traumas de infância por tais fatores ocasionados, é de se supor a formação de adultos emocionalmente ou mesmo psicologicamente comprometidos.

Em função disso, estudos contemporâneos indicam que o alcoolismo, da mesma forma que o vício em outras drogas – lícitas ou não – está associado, dentre outros fatores, mais diretamente a questões emocionais que abrangem desde o trato familiar ao social. No livro, os pais de Dulce utilizavam-se da bebida como um “facilitador” da realidade: “[...] Pai... bebe não […]” / “Mas, ô, filhota... Como eu vou suportar? O pai precisa de alguma coisa para não sentir essa dor [...]”. Além disso, ambos os progenitores possuíam histórico de relações familiares conturbadas. Com o tempo e a assiduidade o vício engessou-se de maneira que lhes foi a ruína última – não muito divergente da realidade que se vê noticiada amiúde.

Ademais, viver e conviver, tanto em família quanto em sociedade, exige de cada indivíduo uma grande flexibilidade e sensibilidade para lidar com as adversidades e imprevistos que se podem suceder, bem como certa estabilidade emocional, como salienta o trecho: […] “Querida, tu não pode ser assim! Não é bacana repreender os amigos desse jeito”/ […] / “Eu te entendo, querida, e até concordo que devemos ser sinceros com os nossos amigos. Mas, tu estás conhecendo ela agora! Tente ser mais paciente [...]” . É importante que se saiba como e quando exprimir um juízo. Deve-se saber compreender as divergências e as particularidades de cada um, adaptar-se tanto aos indivíduos quanto aos contextos, compreender a “uni-multiplicidade” da humanidade. Desta forma desenvolve-se não somente o trato social como também a habilidade de se lidar com as vicissitudes.

Desta forma, compreende-se que as relações familiares, sobretudo durante a infância, são determinantes para a formação emocional e psicológica dos indivíduos e, por conseguinte, a maneira como este irá relacionar-se com o mundo quando adulto. Se o ambiente onde a criança cresce for instável e participação dos pais defectiva, é muito provável que a mesma siga esse modelo de ser, ou ainda que não tenha um pleno desenvolvimento das competências sociais, vindo mais tarde a compensar suas carências nalgum vício – mais comumente em drogas, sejam lícitas ou não. Em função de tal desestrutura, alguns psicólogos apontam que bom percentual dos indivíduos busca acomodar-se em qualquer condição, desde que ela proporcione o alívio de seus medos; assim, muitos temem mudanças e frustações, não conseguem lidar com esse tipo de evento, o que acarreta não serem capazes de adquirir conhecimento de mundo, de mudarem com as vicissitudes e viverem em sociedade. Porquanto, infere-se o papel nucelar indelével da família face à sociedade, e desta última para com cada membro seu no sentido de tornar a existência um prazer e não um flagelo.

Parte II: da música “Terra de gigantes” e sua análise

Hoje, mais que nunca, vivemos em um mundo de gigantes da indústria, da Arte, do intelectualismo, da religiosidade e de diversos outros segmentos sociais. E, como é de se supor, quem não for tão grande deve tomar o cuidado de não ser esmagado e buscar crescer logo ou ao menos encontrar uma forma de subsistir em sua pequenez. Desta forma, nossos dilemas pessoais – ainda que tão universais – fazem-se irrelevantes aos grandes, de modo que a transição de uma fase da vida para outra, as crescentes exigências da sociedade e o processo de amadurecimento do pensamento geram um sentimento de solidão e irrelevância a quem desponta para o mundo adulto.

 Enquanto somos infantes o mundo nos é uma nova fantástica – e a recíproca é verdadeira. Os livros e os adultos nos permeiam de sonhos e valores de forma tal que somos induzidos à crença de uma realidade ideal, onde vemos o mundo com simplicidade e sabemos tudo o que queremos ter e ser. Todavia, esta fase um dia expira e logo principiam as insatisfações, como se percebe no eu-lírico: “[...] eu tenho uma guitarra elétrica / durante muito tempo isso foi tudo / que eu queria ter. [...]”. Surge, então, a necessidade de novos desafios e também da contemplação mais profunda da realidade.

Desta forma dá-se, gradativamente, o processo de evolução da complexidade do pensar, o qual pode apresentar-se complicado e mesmo sofrido para muitos, como parece ser o caso do eu-lírico: “[...] Mas, hey mãe! / Alguma coisa ficou pra trás / Antigamente eu sabia exatamente o que fazer [...]”. É nesse período que medos e incertezas avultam-se ao passo que passamos a observar o mundo mais diverso, mais profundo e complexo com tantas possibilidades e variáveis que nos fogem do alcance. Tentamos elencar, assimilar tudo isso, mas por vezes a bagagem cognitiva ainda é pouca para tanto, de forma que se principia a perceber a complexidade da existência e sentirmo-nos não mais tão “ímpares” e seguros, e sim confusos e incertos abrindo caminho às questões de cunho existencialista.

Não obstante ter de lidar com tantos dilemas pessoais – e tão comuns à humanidade – como o é o amadurecimento, os processos de formação, a escolha de uma profissão, a busca pelo emprego sonhado etc., tem-se ainda de digladiar com as arcaicas e mesquinhas estruturas ideológicas sociais onde o que vale é o produto de um processo e não o processo em si, de maneira que o indivíduo é tratado como mercadoria em função de sua força de trabalho: “[...] nessa terra de gigantes / que trocam vidas por diamantes [...]”. Nesse contexto, o indivíduo passa sentir-se só no mundo, preso a “uma ilha a milhas e milhas de qualquer lugar”; abandonado enquanto ser “bio-psico-social” e percebido apenas como um objeto necessário, tal como uma mera e inanimada engrenagem ao funcionamento das estruturas econômicas.

Portanto, compreende-se que, hodierno, nossas sociedades tão modernas exigem que cada vez mais cedo os jovens abandonem os sonhos e utopias que toda infância dita saudável proporciona e que deveriam, segundo um sentimento arraigado à alma do mundo, nortear a formação da têmpera do ser humano ideal, ainda que passível de falhas. Impuseram-se tantos padrões e exigências, tantos modelos de ser, ter e agir que a idiossincrasia, a humanidade de cada um ser vai sendo olvidada e, para que se atenda a tantas demandas, está-se a viver em uma eterna correria que nos faz antecipar tudo, de modo que, ao invés de viver-se cada fase da existência profundamente – e quedar-se ao cabo naturalmente preparado à próxima –, pretende-se fazer de cada dia o último e nele viver toda uma vida sem jamais pensar no amanhã. Nessa insanidade de morte, de desprezar o esplendor da existência, nem mesmo que se dispusesse da eternidade haveria tempo bastante. Porquanto se precisa saborear melhor a vida e viver mais profundamente e não velozmente, pois como já disseram “o tempo não para” e nem tudo é fabricável ou comercializável, a exemplo da felicidade.

Considerações finais

Viver é interagir com mudanças, adequar-se a situações e evoluir através da aprendizagem com os erros e as dificuldades. No mundo de hoje os jovens, sobretudo, não-raro veem-se lidando com problemas como o desemprego, o abandono e as mudanças que a vida e a sociedade exigem.

Desde muito cedo somos alertados sobre a necessidade de evoluirmos intelectualmente, socialmente; falam-nos das mudanças e de sua benfazeja existência. Ocorre que nem sempre estas mudanças são bem-vindas ou desejadas; por vezes nos acomodamos em um contexto e nos recusamos a abandoná-lo. No geral ansiamos por um porvir esplêndido, mas tememos as incertezas e o não sermos capazes de lidar com elas.

O desemprego, por exemplo, é um dos principais temores de muitos brasileiros, preponderantemente dos jovens que estão ingressando no mercado laboral, repletos de metas e sonhos. A autonomia financeira dignifica, uma vez que seja assaz degradante a condição de pedinte, dependente da boa vontade alheia ou de parentes.

Em tais contextos, onde o jovem ou mesmo o adulto encontra-se à mercê de outrem, podem ocorrer situações de abandono, deixando o indivíduo em uma situação ainda mais desesperadora. O abandono familiar, expresso muitas vezes na falta de compreensão e apoio dos familiares, quando aliado ao menoscabo social, muitas vezes manifestado pela inobservância das qualidades e aptidões em detrimento de outros aspectos supérfluos e/ou imorais, tais como a predileção fundamentada em aparências e bajulações, pode apontar para um quadro depressivo ou de desesperanças, bem como corroborar com problemas sociais.

Desta forma, temos que a sociedade e a própria vida exigem de nós uma imensa maleabilidade e capacidade de adequação ao ambiente, tal como um camaleão capaz de camuflar-se, e assim proteger-se garantindo sua subsistência, em qualquer meio. Contudo, por mais que nos preparemos às mudanças, sempre teremos de conviver com medos e incertezas, de maneira ou outra; assim, precisamos evitar os “acomodadores”, como diz Paulo Coelho, e seguirmo-nos aprimorando, pois somente podemos – e precisamos dessa certeza única – contar com as nossas capacidades e conhecimentos, com nós mesmos... Dos demais devemos cobrar apenas uma atitude friamente racional em relação as nossas qualidades e ações, uma contemplação do mérito, tão-somente. Afinal, como diz Malba Tahan: “o homem só vale pelo que sabe”...

Referências
ILHA, Andréa. “A menina que veio de longe”. 1ª ed. São Paulo: All Print Editora, 2012. 79 p.
IstoÉ, 07 de maio 2008, p. 21;

IstoÉ, 04 de novembro 2013,

SciELO: A Scientific Electronic Library Online.

Psicoterapêutico

VARELLA, Dráuzio.  “Dependência química”.
< http://drauziovarella.com.br/dependencia-quimica/dependencia-quimica/

SCHNORRENBERGER, Andréa S. “A família e a dependência química: uma análise do contexto familiar”. Florianópolis: UFSC, Centro Sócio Econômico,

Departamento de serviço social. Fevereiro de 2003.
< http://tcc.bu.ufsc.br/Ssocial288588.PDF>

Qualidade Simples

Oncomédica: ajudando pessoas a vencer desafios.

Resiliência.
< http://pt.wikipedia.org/wiki/Resili%C3%AAncia_(psicologia)>

“Engenheiros do Hawaii”: “Terra de Gigantes”, composição de Humberto Gessinger.
< http://letras.mus.br/engenheiros-do-hawaii/12906/>

Ana Carolina: “Unimultiplicidade”, composição de Tom Zé

Hopcraft; Hopcraft; Flint; Janszen; Germain. “Duma”. [Filme-vídeo]. Produção de Carol Cawthra Hopcraft, Xan Hopcraft, Carol Flint, Karen Janszen, Karen Janszen, Mark St. Germain. EUA: Warner Bros, 2005. 1 DVD, 100 min. color. son.

WEST, Morris. “As Sandálias do Pescador”. --. Rio de Janeiro: Distribuidora Record de servicios de impensa, S.A., 1963. 264 p.

COELHO, Paulo. “O Zahir”. --. Rio de Janeiro: Rocco, 2005. 316 p. 


***

ANEXOS



I “Terra de Gigantes”
Compositor: Humberto Gessinger


Hey mãe!
Eu tenho uma guitarra elétrica
Durante muito tempo isso foi tudo
Que eu queria ter

Mas, hey mãe!
Alguma coisa ficou pra trás
Antigamente eu sabia exatamente o que fazer

Hey mãe!
Tem uns amigos tocando comigo
Eles são legais, além do mais,
Não querem nem saber
Que agora, lá fora
O mundo todo é uma ilha
A milhas e milhas
De qualquer lugar

Nessa terra de gigantes
Que trocam vidas por diamantes
A juventude é uma banda
Numa propaganda de refrigerantes

Hey mãe!
Já não esquento a cabeça
Durante muito tempo
Isso foi só o que eu podia fazer
Mas, hey mãe!
Por mais que a gente cresça
Há sempre alguma coisa que a gente
Não consegue entender

Por isso, mãe
Só me acorda quando o sol tiver se posto
Eu não quero ver meu rosto
Antes de anoitecer
Pois agora lá fora,
Todo mundo é uma ilha
A milhas, e milhas, e milhas...

Nessa terra de gigantes
Que trocam vidas por diamantes
A juventude é uma banda
Numa propaganda de refrigerantes

Mega, ultra, hiper, micro, baixas calorias,
Kilowats, gigabites
Traço de audiência
Tração nas quatro rodas
E eu, o que faço com esses números?
Eu, o que faço com esses números?

Nessa terra de gigantes
Eu sei, já ouvimos, tudo isso antes
A juventude é uma banda
Numa propaganda de refrigerantes

Hey mãe.....hey mãe



II “Unimultiplicidade”
Compositor: Tom Zé

Neste Brasil corrupção
pontapé bundão
puto saco de mau cheiro
do Acre ao Rio de Janeiro
Neste país de manda-chuvas
cheio de mãos e luvas
tem sempre alguém se dando bem
de São Paulo a Belém
Eu pego meu violão de guerra
pra responder essa sujeira
E como começo de caminho
quero a unimultiplicidade
onde cada homem é sozinho
a casa da humanidade
Não tenho nada na cabeça
a não ser o céu
não tenho nada por sapato
a não ser o passo
Neste país de pouca renda
senhoras costurando
pela injustiça vão rezando
da Bahia ao Espírito Santo
Brasília tem suas estradas
mas eu navego é noutras águas
E como começo de caminho
quero a unimultiplicidade
onde cada homem é sozinho
a casa da humanidade.



Farias, M.S.: "Unimultiplicidade social". Maio de 2014. http://livredialogo.blogspot.com.br/
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