terça-feira, 22 de março de 2016

Uma canção, uma memória...

Borregardt entrou no trem e logo dirigiu-se a sua cabine. Sentado no cômodo estofado, observava pela janela a bela paisagem interiorana passar a quilômetros. De repente uma canção que soava pelos auto falantes do vagão tirou-lhe de sua divagação. Aquela melodia o transportou para muito além, numa tarde de outono. 

Primeiro o velho carvalho, alto e imponente, bem copado, em seguida uma, duas folhas dançando ao ar em seu processo de descida rumo ao chão de terra onde aos poucos se vão acumulando, cobrindo-o quase totalmente. A névoa que encerra toda afeta recordação vai cessando, dando lugar aos raios dourados de um sol sem calor. Um velho banco protegido pelo carvalho, nele vislumbra-se dois perfis. Antoine tem sua perspectiva transportada: está frente a frente com um  belo par de olhos castanhos, magnetizado pelo doce brilho que deles emana. Moldando aquele olhar estupendo um rosto delicado, de uma tez morena, porém carregado de uma expressão resignada, espécie de dor ou tormento  emudecidos. Incontidamente, levado por aquele magnetismo e um sentimento inexplicável ele leva amavelmente sua mão ao rosto da moça, acaricia-lhe a face, ajeita-lhe os negros cabelos e a beija intensa e apaixonadamente.

Abaixo deles corre mansamente um rio de águas negras, refletindo de maneira opaca a luz daquele sol dourado que inunda toda a cena. 

Vistos de longe, eram lindos, uma pintura épica. Dois corações tão machucados, calados num beijo que gritava vontades e desejos tão antigos. 

O sol toma conta e a imagem se desfaz. Com os olhos marejados, lá estava Borregardt novamente no vagão daquele trem. Os sentimentos daquele momento que, ao menos em lembranças, revivera há pouco ainda lhe preenchiam o peito. 

O sabor daquele beijo, a textura daqueles lábios... Ainda os podia sentir.

"Maldição!', pensou consigo. Supunha já haver esquecido tudo aquilo, superado a paixão falsa e impossível. Aquele arrebatamento o pegou desapercebido. 

Depois de tudo, nunca mais havia ouvido aquela canção. "Magnífica magia tem a musica: é capaz de dar vida a lembranças já 'esquecidas'", conjecturou. 

Não a queria de volta, isso é certo. Já não sente por ela qualquer paixão ou compaixão, mas aquela recordação trouxe-lhe o desejo de beija-la intensamente uma vez mais.

"Não é ela, é a lembrança. A moça por quem me apaixonei aquela tarde morreu. Que morte triste, só restou o corpo vivo - ou será que jamais existira?", concluiu...
 
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