quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

O fogo é destruidor, mas é também renovador

[...] Muitas semanas se haviam passado desde aquela conversa com Bella na sala de sua
biblioteca particular, onde sentado em sua poltrona de leitura, observando as chamas da lareira crepitarem, narrou à sua melhor amiga os fantasmas que se lhe assombravam a alma. Antoine ainda podia relembrar aquela cena como que numa fotografia: Bella ainda vestida para a festa de aniversário de sua irmã - donde partiu às pressas para a residência Borregardt -, deitada sobre o divã, com uma taça de Pinot Noir, escutando-lhe, com um olhar sarcástico e curioso cada palavra...
Também se haviam passado muitas semanas desde que tivera aquela dura conversa com Hanna, em seu gabinete no Parlamento. Parecia, enfim, que tudo estava sepultado e sobre as ruínas deixadas por aquela guerra invisível aos olhos, mas sensível ao espírito, uma nova e mais sólida construção se iniciava. Foi então que, certa tarde em seu gabinete chegou-lhe à mão uma correspondência sem remetente. Um envelope branco, com letras pretas cursivas à tinteiro. "Ao Ilmo. Sr. Antoine Borregardt", dizia no destinatário, quanto ao remetente, apenas se podia saber que vinha de Paris.
Ao abrir a envelope, nada mais que um recorte de uma revista literária, especificamente da seção de ficção e romance. Era o excerto, o início, o meio ou quem sabe o fim de algum ensaio, algum conto tragicômico, quem sabe?! Dizia:

"... como é doloroso abrir mão de algo que amamos, alguém a quem sempre desejamos pertencer, mas o amor é traiçoeiro, não?!...
Ainda me lembro daqueles olhos azuis como as águas do Caribe, do cabelo bagunçado e do riso solto a cada encontro. Lembro-me do perfume e da camisa amarrotada, da gravata favorita... 
Doces lembranças!, mas a insensatez da juventude, a qual tanto me fascinou, a vivacidade e a sede de aventura que ainda vejo em suas fotos quando, ao caso, encontro uma ou outra notícia num jornal ou numa revista, faz-me, secretamente, imaginar-nos ainda na imensidão do mundo das ideias. Inútil! 
Minha dor se ameniza somente pelo esquecimento, num outro amor, maior quem sabe?!, que me faz esquecê-lo tão brevemente quanto o foi nosso amor.
Talvez ele jamais saiba, mas em um dia cinzento, caminhando pelas ruas de Paris, andamos lado a lado: ele não me reconheceu - e por isso pude admirá-lo demoradamente, sem o inconveniente de ser notada e ter de vestir minha túnica de gelo. A dor que sinto, tenho certeza, veria então em sua face. Bem sei quem foi responsável por tudo isso, mas era necessário, ambos sabíamos, porém não tínhamos coragem de dizer adeus...
Admiro-lhe a força, afinal, ele finalmente está seguindo em frente e, embora não se recorde de meu rosto - tantos anos se passaram - ou fingir não recordar - isso não importa - tenho convicção de que, em algum lugar de seu coração ao menos as cinzas do amor que nos consumiu um dia ainda há de existir!
É estranho pensar que apenas um final de semana bastou para que um sentimento maior que a eternidade nos tomasse conta, para que nos conhecêssemos mais que a qualquer outro. 
Mas hoje não tenho certeza se isso foi real. Sobrou-me apenas a lembrança de uma lágrima apaixonada, de um sorriso despreocupado, de um 'te amo'..."

A página acabou. Além de não ter um começo, também não tem fim. Que perda de tempo, pensou Antoine. Certamente é um trabalho amador, publicado na seção de envios do leitor. Mas por que me foi enviado? Devem ter me confundido com o redator, ou pensado que, se me agradasse, poderia recomendar ao editor. Mas não tem dados do autor, nem da revista. Amaçou o papel e preparou-se para jogá-lo no lixo quando viu um impresso no interior do envelope: era um rabisco: um guarda-chuvas vermelho. Então Antoine deu-se conta de quem lhe havia remetido aquilo: Kate! 
Rapidamente dirigiu-se à lareira, acendeu o fogo e lá jogou o recorte da revista e o envelope. Assistiu ao fogo consumir cada centímetro daqueles papéis, certificou-se de que nada sobraria. Assim como Kate jamais deveria ter saído de seu passado para seu presente, esse pedaço do ontem não deve existir no agora. Pensou em Hanna, pensou em Bella, nas últimas semanas, em tudo. 
Ao sair do gabinete recomendou à sua secretária: "mande limpar a lareira, eu não quero nem vestígios de cinzas por lá. Se preciso, mande lavar, raspar o reboco e fazer de novo!". "Por Deus!, senhor Borregart, que houve?", perguntou-lhe a pobre moça. Com um olhar sarcástico, calmamente Antoine lhe responde: "Alguns túmulos nunca devem ser (re)abertos, pois nunca se sabe se o que há lá dentro está morto ou vivo!".
Sentindo-se em paz, com um breve sorriso e sem que a sua interlocutora tivesse tempo de pensar e voltar a falar, Antoine Borregardt seguiu caminhando pelo enorme corredor do palacete do parlamento, cantarolando baixinho uma velha canção brasileira, pensando em Hanna e todo seu amor por ela...


Autor Desconhecido

sábado, 9 de janeiro de 2016

Ensinar e aprender nunca acabam

Olhando os comentários em algumas páginas com publicações acerca do ENEM, vê-se um sem número de pessoas reclamando não propriamente de seu desempenho, mas da enorme distância entre aquilo que eles viram em sala de aula durante seu Ensino Médio e aquilo que lhes foi cobrado no concurso.
Isso me fez recordar de uma das muitas discussões que minha turma tinha com os professores no último ano do Ensino Médio sobre o ensino. Nós queríamos aulas que nos preparassem para o Exame; eles argumentavam que o ensino não podia destinar-se a um concurso, que isso seria tão somente um treino. E eles estavam cobertos de razão, embora errados.
Explico.
A função do ensino é capacitar, de maneira que, frente a um novo desafio, o sujeito seja capaz de desenvolver as habilidades necessárias para superá-lo. É por isso que, depois de estudar Cálculo durante um ou mais semestres, por exemplo, os acadêmicos são capazes de, no futuro, desenvolverem habilidades em outras áreas como a Estatística ou a Matemática Financeira com maior facilidade, pois possuem capacidade de entendimento maior.
O treino, no entanto, direciona para um único objetivo: fazer incessantemente listas de cálculo, sem se preocupar com os conceitos, por exemplo, pode fazer com que o acadêmico passe em Cálculo porque entendeu o que fazer frente a um modelo ou outro de atividade, mas ele não se apropria disso e logo que a prova passa e o objetivo - aprovar - é consumado, esquece.
Quando eu estava no Ensino Médio, a maioria dos meus professores estava preocupada em fazer-nos aprovar. Ensinavam segundo um curriculum que acreditavam ser capacitador, todavia, esse ensino não acompanhava a realidade. Hoje, um estudante de Administração, eu diria: o Ensino Médio que eu tive foi pouco eficiente e pouco eficaz. A matriz curricular estava muito distante daquilo que eu precisei. Digo isso por que quando efetivamente tive de desenvolver novas habilidades, o ensino que eu tive não me propiciou uma boa base - e eu tive de desenvolvê-la aos poucos.
Felizmente isso não se aplica a todos. Em três anos de Médio eu tive alguns professores memoráveis, instigantes, graças aos quais eu cheguei à Faculdade com um bom domínio de alguns assuntos importantes - meu primeiro semestre que o diga!
Por isso, hoje, frente a tantas frustrações frente ao Exame Nacional do Ensino Médio, eu pergunto: que tipo de ensino capacitador as escolas de segundo grau preocupam-se tanto em defender se suas matrizes curriculares estão simplesmente caducas? Treinar é uma ideia terrível, mas aprisionar intelectos é ainda pior, eu diria. As instituições secundaristas precisam atualizar-se, melhorar o grau de exigência e qualificação de seus alunos. Mas isso só é possível se: (a) os diretores e os coordenadores tiverem visão, e isso requer acompanhar as transformações, tendências e exigências do mundo lá fora, e com isso projetar o ensino necessário à formação de um indivíduo capaz; (b) os professores, igualmente, estiverem em contínua aprendizagem e desenvolvimento - e não parados no tempo, encorados nos conhecimentos de quando colaram grau em 1990 ou em 2000. 
A frustração sobre a qual falei no primeiro parágrafo é fruto desse descompasso cronológico e qualitativo entre as salas de aula e a realidade. Não é normal concluir o Ensino Médio com a sensação de que pouco ou nada se aprendeu, de que não se tem conhecimentos suficientes para, por conta própria, ampliá-los. Não é sinal de qualidade só aprender no Ensino Superior àquilo que é competência da esfera anterior.

Farias, M.S. "Ensinar e aprender nunca acabam". Janeiro de 2016. http://livredialogo.blogspot.com.br/
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