Sumário:
Entrevista que com uma freira de certo convento,
prestes a ser profanado, teve um jornalista que se julga livre-prosador.
O que se vai ler é o diálogo ultimamente
travado entre uma freira, abadessa ou priora de certa comunidade, nesta
capital, e um jornalista que entendeu oportuno entrevistá-la.
Freira — Diz o senhor que tem qualquer
cousa a tratar comigo. Pode falar.
Jornalista — Reverenda madre, eu
quisera obter informações que me habilitassem a escrever com acerto sobre o seu
convento, e dele dar ao público uma notícia que não se apartasse da verdade.
F. — Notícia ao público! E que temos
nós com o vosso público, isto é, com o mundo de que voluntariamente nos
afastamos, cortando até mesmo os laços de família que a ele nos prendiam?
J. — Não ignoro que
menosprezais o mundo, mas não é menos certo que ele vos não menospreza e que se
ocupa convosco. Vossa existência murada é um incentivo para a curiosidade. Por
trás das chapas e das grades farejamos uns mistérios que ardemos por descobrir.
Neste século de publicidade tendes o atrativo do que se recata e esconde.
Natural é, pois, a trêfega indagação que ao redor desta casa vagueia, e da qual
nós, os homens de imprensa, somos os órgãos naturais. Não seria, pois,
preferível dizer-lhes logo o que é, por não deixarmos lugar a conjecturas
talvez errôneas e nocivas?
F. — Se assim é como
dizeis, o que de melhor poderíeis fazer seria explicar-lhe, ao vosso público,
que por trás destes muros e nesta associação religiosa não há outros mistérios
senão os da nossa religião, exarados no catecismo. Como vivemos e o que fazemos
consta, outrossim, da nossa regra monástica, que muitas vezes se tem publicado.
J. — O público, ou, se preferir, o
mundo não pode compreender por que, quando em torno de vós tudo se move e se
agita, assim persistis na imobilidade do claustro.
F. — Não me pareceis lógico afirmando a
nossa imobilidade, quando há pouco parecíeis de todo ignorar qual o nosso
gênero de vida; e singularmente vos enganais acreditando que vivemos ociosas.
Ainda mesmo supondo que não trabalhemos materialmente, o que não é bem verdade,
ainda assim grande e importante seria a nossa tarefa. As mãos que se erguem
para o céu fazem um imenso trabalho: não foi um santo, mas um dos vossos,
Victor Hugo, quem o escreveu nos Miseráveis.
J. — Muito folgo,
reverenda madre, que me citeis, não padres da Igreja, que não leio, mas
pensadores profanos, o que mostra que os tendes lido, ao menos alguns, e isto
nos abre um terreno, conhecido por nós ambos e em que sem constrangimento nos
poderemos encontrar.
F. — Antes de professar
li o que intitulais pensadores profanos, e estimo que isso vos traga qualquer
vantagem para nos entendermos. Permiti, porém, que assinale uma das vossas
fraquezas habituais. De ordinário, em vossa profissão de jornalista, quando,
por exemplo, tendes de atacar a administração militar, procurais livros e
autores que especialmente se ocupem da matéria. Tratados de ciência naval não faltariam
na vossa biblioteca se tivésseis de escrever sobre marinha... Mas como é que
todos discutis assuntos religiosos, sem conhecer ao menos os rudimentos da fé e
da disciplina católica? Não falaríeis, certamente, sobre a literatura francesa
do século décimo oitavo sem leitura de Voltaire; e vós mesmos, que vos
propondes escrever sobre a vida monástica, jamais tendes lido um dos bons
tratadistas que vos diriam o que ela seja!
J. — De boa mente
confesso que aí não vos falta alguma razão, desde que a censura se dirija a
mim, ou a qualquer outro publicista de penúltima classe; mas não acredito que
seja fundada em relação aos verdadeiros cientistas.
F. — Haeckel, verbi
gratia, o emérito propugnador do monismo, não o tendes por cientista às
direitas? Pois bem, ainda outro dia ele assombrava o mundo religioso,
revelando, em uma polêmica, a mais estupenda ignorância dos dogmas católicos,
por isso que confundia a Encarnação do Verbo com a Imaculada Conceição de
Maria. Os vossos governos, aliás, fomentam essa ignorância, proibindo que em
país de católicos se ensine a doutrina católica.
J. — Isto se faz para
assegurar a liberdade de consciência.
F. — Perdão: então não
apanhastes o meu argumento, ou antes fui eu quem não se fez compreender. O que
digo é que, independentemente de qualquer intimativa, coação ou sedução
religiosa, a doutrina cristã deveria ser ensinada em vossas escolas como
elemento essencial e indispensável para a compreensão da atual ordem de cousas,
da civilização ambiente. Que fazeis para entender a vida grega e romana? Ler e
reler a Cité Antique, de Fustel de Coulanges, ou qualquer outro autorizado
especialista. Em Constantinopla, nada entenderíeis da cidade otomana e de seus
usos, se de todo estranho vos fosse o Alcorão. Pois bem! viveis em uma
sociedade católica — eis o fato — e sonegais aos vossos alunos o único livro
que lho poderia explicar.
J. — Percebo agora,
reverenda madre, a força de vosso raciocínio, e não vos negarei que, conquanto
especioso, não acho de pronto com que o refutar. E igualmente vos dou o
parabéns pela agudeza dialética que exibis e que, com franqueza, não pensava
encontrar neste retiro, onde fora de supor que no misticismo se embotasse o
gume da razão.
F. — A devoção mais
fervorosa não é incompatível com o cultivo das letras; e, se acaso vos não
tivera esquecido a história literária, bem presente vos seria a nossa matriarca
Santa Teresa de Jesus, cujas obras ao mesmo tempo exornam a literatura sacra e
enaltecem a prosa e a poesia espanholas do século décimo sétimo.
J. — Teresa de Cepeda e Ahumada foi,
reverenda madre, um poderoso engenho sobre-excitado pela histeria, e que,
excepcional em tudo, não pode ser trazido como regra.
F. — Nem eu vos digo que Santa Teresa
deva ser tomada por espécime comum da intelectualidade monástica; da mesma
sorte que para espécime da vossa inteligência há fora, no mundo, erradamente se
apontariam extraordinários intelectos. Na canonização de Santa Teresa, em 1622,
Cervantes compôs uma ode, que foi lida por Lope de Vega. Ora, entre vossos
romancistas e dramaturgos não vejo quem com esses dois vultos possa suportar o
confronto.
J. — Está bem, reverenda
madre, e peço que a mal não tomeis aquilo que me escapou no tocante à histeria:
falo como homem do meu século, ao qual repugna o sobrenatural.
F. — Duplo engano, meu
filho. Em primeiro lugar não há confundir histeria com o que chamais a
exaltação da nossa santa. Vossos hospitais estão cheios de histéricas, e é
singular que lá esse estado nervoso só conduza a disparates e loucuras, ao passo
que na monja incomparável tão acima se elevou das melhores capacidade
contemporâneas. Sei que há uma escola, ou antes, um grupo, para o qual todo
gênio é uma enfermidade mental. Napoleão foi um epiléptico... Quero crer que o
perfeito equilíbrio mental seja para esses tais a mais pacata mediocridade; e
neste sentido lhes concedo que hoje tantos se exibam perfeitamente
equilibrados.
J. — Este seria o meu primeiro erro; e
o segundo...
F. — O segundo é supordes que ao vosso
século repugna o sobrenatural. Pura ilusão! Sobrenatural e preternatural (que
não são o mesmo) coexistem convosco, e neles estais e viveis imersos. O milagre
permanente de Lourdes desafia todos os dias os vossos cientistas, que, não
podendo negar os fatos, só têm para explicá-los uma palavra: — sugestão. O
preternatural? Mas acaso ignorais que nesta cidade, quotidianamente, se evocam
mortos, e milhares de pessoas, aos torvos de espíritos que por eles se
apresentam, pedem o segredo da saúde e o da felicidade terrena, com sacrifício
da futura? Nunca, eu vo-lo asseguro, nunca tão impregnado de sobrenatural e de
preternatural esteve quanto agora o gênero humano. Nesta crise de fé, Deus
amiúda os milagres, e para derribar a inconsistente fábrica do materialismo
estavam reservadas aos nossos tempos as experiências dos ocultistas.
J. — Consenti, reverenda
madre, que vos observe estarmos já muito longe do objeto que me induziu a
importunar-vos. Não me dais licença para visitar agora o convento?
F. — Não. Vê-lo-eis depois, quando o
tivermos deixado aos profanadores que dele vão fazer um hotel, segundo ouço
dizer¹.
Onde se rezava, há de haver festins e dissoluções... Tanto pior para vós! Nós
continuaremos ociosas, como dizeis, ou trabalhando, como dizia Victor Hugo, com
mãos e olhos alçados para o céu, que é donde baixa a complacência para os que
oram e a misericórdia para os que pecam.
J. — Não receais que, mal guiada por
vossos inimigos, à opinião se transvie a vosso respeito?
F. — A opinião? Não a
conhecemos nem a tememos. Costumais lamentar, e quero crer que sinceramente, a
privação de liberdade que nos impusemos... Mas acabais de proferir o nome de um
tirano a cujo domínio estamos subtraídas: — a opinião. Dela tremeis todos,
desde o primeiro magistrado da República até o último cidadão: e nós
impassíveis a afrontamos, melhormente eu diria — nem sequer a avistamos. Morrem
às nossas portas essas ondas lodosas que chamais escândalo. Nossos
caluniadores, não podemos pessoalmente amá-los, pois não sabemos quem sejam,
mas todos os dias rezamos por eles, de ordem expressa de Jesus: Orai pelos que
vos perseguem e caluniam.
J. — Mas, se indiferente
vos pode ser o aleive em circunstâncias normais, haveis de convir que em
quadras agitadas ele pode motivar o esbulho, o desacato, a violência...
F. — Escutai, meu filho.
Quando o sacrifício se faz martírio, tanto maior a graça de Nosso Senhor. lede
a história da revolução francesa, e lá encontrareis, em um dos capítulos do
terror, a execução das carmelitanas de Compiègne. Morreram contentes, entoando o
Te Deum. A priora, uma nobre velha, reservara-se para o fim, não por prolongar
de minutos a existência, mas para confortar com sua presença as mais novas,
entre as quais algumas na flor da juventude. Morreram todas como os mais bravos
dentre os homens! Se em uma de vossas revoluções, que tão amiúde se sucedem,
alguma se lembrar de nos bater à porta, achar-nos-á junto do altar; e deste
para o céu o caminho é curto, ainda que seja através do apupo e do martírio.
J. — Ninguém, felizmente,
em nossa terra, reverenda madre, pensa em prejudicar-vos e menos ainda em
perseguir-vos. A tolerância é um dogma da verdadeira democracia...
F. — Sei disso... Vós, por ora, nos
tolerais como quem tolera o vício ou o desvairo das ruins paixões. Seja como
for, será o que Deus quiser! Se nos tolerardes, como nos Estados Unidos,
havemos de conquistar mansa e irresistivelmente as consciências; se nos
perseguirdes, como na França e em Portugal, por nós clamarão, diante de Deus, a
ignomínia e os sofrimentos a que nos submeterdes.
J. — Mais ou menos o que havemos dito
formaria um artigo interessante, pela pintura de dois estados d'alma tão
diversos quanto o vosso e o meu. Não haveria, talvez, mal em publicá-lo... E,
neste caso, não me fixareis algum ponto, que particularmente desejareis que se
soubesse?
F. — Sim. Dizei lá fora que, com amor
fraterno, nós vos amamos a todos — aos que nos defendem e protegem, bem aos que
nos injuriam e detraem... Dizei-lhes que a nossa prece é uma catedral que não
se acaba, e que nas ogivas destas mãos continuamente alçadas há o labor de uma
construção que não percebeis, porque não olhais para o céu!
1. Segundo indica este trecho, o convento onde se teria dado este suposto diálogo
seria o da Ajuda, em cujo terreno foi construída a atual Cinelândia, no Rio de
Janeiro.
Texto recebido por e-mail, desconheço autoria e veracidade.
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