sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Um conto farrapo.

Amanhecia o dia de catorze de janeiro do ano da Graça de 1837, na cidade de Piratiny. O sol descampava o cimo das montanhas que cercam o recém-formado povoado açoriano, com suas casas encaliçadas, suas ruas de terra, adornadas de árvores nativas, floridas da primavera.

Os peões e capatazes das fazendas, os homens de guerra e política, estão levantando-se e aos poucos dando movimento, as até então desertas ruas.

As finas damas e senhoritas, delicadas como a pétala da mais maviosa flor do campo, descansam tranquilamente em suas alcovas.

A criadagem há muito já estava de pé, cuidando de seus muitos afazeres...

Na casa de estilo português, situada à esquina da fábrica de pólvoras e foguetes, despertava de seu manso sono a mais bela senhorita do povoado, filha do tenente de Dragões do Império Brasileiro, D. Sebastião de Menezes Filho, Dona Clarice de Queiroz Menezes era uma flor de menina! Sua feição angelical era como se fora criada no dia de mais perfeita inspiração de Deus, tinha os olhos castanhos, a tez clara, os lábios macios e aveludados como a pele, e os cabelos longos, cacheados e negros a cair pelos ombros. Irradiava luz como adornada pelos límpidos raios do sol. Tudo nela era harmonioso.

Nesse dia, acordara cedo, pois sua mãe Dona Ismênia de Queiroz Menezes e ela, ambas beatas, iam a missa pontualmente as oitos horas, com medo de atrasarem-se e serem repreendidas pelo Padre Manuel de La Piña.

Ao chegarem à Sé foram logo para seus lugares, ouvirem o sermão.

Eram tempos de guerra contra o império, e os farrapos pretendiam tomar o povoado, Padre Manuel da La Piña, pregava sermões homéricos contra os farrapos, pondo em pedestais de ouro o Império.

Ao término da missa, Clarice e sua mucama distanciam-se de Dona Ismênia, e foram ver o que se passava no centro da Praça da Sé, onde havia um aglomerado de pessoas, que utilizavam ao redor do pescoço uma tira de pano de vermelho: eram os revolucionários!

Ao aproximarem-se, viram sobre um tronco de acácia um farrapo, que eloquentemente discursava:
"Irmãos piratinienses, é chegada a hora de levantarmo-nos em armas contra este império corrupto, que se ostenta cada dia mais as nossas custas, deixando a mercê da sorte os seus súditos. Enquanto a burguesia vive luxuosamente, o povo brasileiro, humilde e trabalhador é esquecido. Lembram-se de nós apenas quando precisam de fazenda ou de homens para morrerem por eles, em lutas fúteis. Enquanto o imperador dorme em berço de ouro, cravejado em diamantes, a nação sucumbe a miséria. É chegada hora meus compatriotas de pormos um basta nisso, é chegada hora de depormos este Imperador de cueiros, de proclamarmos nossa independência, de sermos livres!... de termos nossa própria pátria, igualitária, solidária e democrática, trabalhando em prol do povo. Vamos meus amigos, pois apoiar esta nobre causa dos farroupilhas, que hão de tornar a este povoado não só na mais importante cidade da nação farrapa como também na sua capital!”...

Nem bem terminou de falar, os homens da guarda real da cidade o algemaram e levaram preso, sobre pretexto de incitação a motins.

Clarice que assistia a tudo encantada, não só com o discurso como também com o jovem cavalheiro que discursara, ficou estarrecida ao ver seu pai dar ordem de prisão. Tratou de sair dali para não ser apanhada.

Em casa, já em sua alcova, não para de elucubrar sobre o que ouvira e vira mais cedo na Praça da Sé, tampouco seus pensamentos desviavam do misterioso cavalheiro, que despertara-lhe suspiros de amor...

Sabia ela, que esse era um amor impossível, e que talvez nem notara-lhe o cavalheiro. Além do mais, seu pai já a havia prometido a mão em casamento a D. Fernando de Ataíde, filho de um general do Império, a quem ela tinha verdadeira repulsa.

Enquanto isso, na cadeia da cidade encontrava-se preso o jovem rapaz, que pensava longamente na figura angelical que vira do alto do tronco ao fundo da multidão, tão docemente ouvindo seu discurso. Mal sabia ele, que era ela Dona Clarice, filha de seu maior inimigo o D. Sebastião de Menezes.

Chega à cadeia nesse momento, o pai do jovem cavalheiro, acompanhado de Caetano de Carvalho, presidente da câmara de vereadores, que dá ordem de soltura imediata do rapaz.

- Gabriel de Almeida, carcereiro desta cadeia, na qualidade de presidente da câmara de vereadores deste povoado lhe ordeno que solte de imediato o Srª. Cristovam Correia de Melo, filho do comandante farrapo Ângelo de Vasconcelos Melo.

- Mas meu senhor, tenho ordens do capitão da guarda para manter-lhe detido até segunda ordem!

- Aqui está vossa segunda ordem! Solte-o ou lhe fará companhia por desobediência a seu superior!
Rangendo os dentes de raiva, o carcereiro abaixo de mal tempo abriu a cela.

- Tu tens amigos importantes, mancebo! Mas até quando terás proteção contra o Tenente D. Sebastião de Menezes? – disse o carcereiro com um ar de ironia.

- Cala-te infeliz ou te mando meter a sete chaves numa masmorra! – retrucou Caetano de Carvalho.
Cristovam cumprimentou amigavelmente aos seus, e logo saíram dali em direção a casa Ângelo Melo.
Ao chegarem lá, dirigiram-se ao gabinete para tratar de assuntos importantes.

- Bueno senhor Caetano de Carvalho, não lhe tenho palavras para agradecer o favor que me fizeste ao soltar este mancebo que só fazia lutar pacificamente contra império, reunindo forças a nossa causa. Mas em contrapartida, bem sei, que com esta digna ação comprou uma desventura com D. Sebastião que poderá por cólera tentar lhe prejudicar, ou mesmo descobrir que estás ao nosso lado na causa farrapa.

-Não se amofine senhor Ângelo, não é motivo para nos preocuparmos. D. Sebastião não há de fazer nada contra mim, ao menos por enquanto... Bem sabe ele, que nada mais fiz que cumprir meu dever, o rapaz nada de mal fez, ao menos que se tenha provas concretas e, eu sendo um homem da lei, devo cumpri-la.

- Mas diga-nos mancebo, tiveste êxito em tua empresa?

- Ora senhor Caetano, penso eu que sim. Mais da metade dos homens e mulheres daqui estavam lá, ouvindo e compactuando com os ideais farrapos, inclusive uma bela senhorita, que andava acompanhada de sua mucama!

- Muy bueno saber que temos apoio da gente desta terra! Mas vejo que esta moçuela lhe atiçou os sentimentos. Sabeis quem é ela? – explanou Ângelo de Melo.

- Não meu pai, não faço cabedal de quem seja, mas cuido que seja de gente fidalga, pois estava muito bem trajada!

- Bueno, o relevante é que já sabemos que contamos com o apoio e simpatia da população pela causa, agora temos é de arquitetar a tomada da cidade! – disse Caetano.

Dito isto, bate a porta um escravo, com uma mensagem a mando de D. Sebastião, para D. Caetano de Carvalho, emprazando de vê-lo naquela tarde, para tirar satisfações a respeito da ação do presidente da Câmara.

Às três horas da tarde daquele mesmo dia, encontrava-se na sala da casa do Tenente de Dragões, o presidente da câmara acompanhado de Dona Ismênia e da Senhorita Clarice de Menezes, a espera do patriarca da família.

- Buenas tardes senhor Caetano! Passemos ao gabinete para tratarmos do que bem sabes.

- Certamente D. Sebastião!

E assim, entrou o Tenente, sem nem ao menos cumprimentar as suas, dirigindo ríspida e diretamente a palavra ao presidente da câmera.

Já no gabinete, encontrava-se sentado em uma cadeira de mogno estofada de veludo negro atrás da mesa de mogno com pernas torneadas, o nosso já conhecido D. Sebastião de Menezes, a sua frente, sentava Caetano de Carvalho em uma cadeira do mesmo par da já descrita.

Com rispidez e traços de cólera D. Sebastião indaga:

- Ora cuê, senhor Caetano! As ordens de quem e com que direito me manda libertar aquele mancebo vira casacas, um revolucionário cobarde, que fica dizendo aleivosias contra a Corte.  Diga!

Frente à ira do Tenente, Caetano temendo uma reação contra sua pessoa, respondeu calmamente.

- Pois... Pois... Desculpe-me senhor D. Sebastião, mas como homem da lei era meu dever fazê-lo! Veja Vossa Senhoria que, não havia argumentos concretos contra o rapaz, logo, permitir que o mantivessem a sete chaves atrás das grades seria uma imprudência minha. Além do mais, o pai do rapaz, Ângelo de Melo, poderia reclamar formalmente contra vossa pessoa acusando-lhe de abuso de autoridade, e assim sendo, bem sabes, teria eu que me manifestar ao Imperador contra sua pessoa. Então para não fazê-lo, resolvi mandar soltar o rapaz, assim lhe evito problemas. Se for crime prezar pela paz de um paisano, possa mandar-me prender.

D. Sebastião, desconfiado do argumento do amigo, mas convencido de que de fato lhe pudessem acusar, redarguiu:

- Ora, se assim era, porque não me viera falar antes de tal providência tomar? De qualquer forma, agradeço pela preocupação.

- Não lhe vim falar antes, porque Ângelo de Melo viera reclamar de vossa pessoa, e antes que tomasse providências de maior empresa, fui à cadeia mandar soltar o mancebo.

- Bueno senhor Caetano, assim sendo terminamos por aqui nossa pratica. E procure cuidar mais apenas de seus afazeres como político.

Caetano de Carvalho teve ímpetos de reagir à provocação, mas considerou melhor deixar como estava, afinal atingira seu objetivo: desviar a atenção do tenente do real motivo de haver libertado Cristovam de Melo.

Mal sabiam eles, que por detrás da porta, minutos antes de saírem da sala, escutava avidamente a dialética de ambos, Dona Clarice que agora sabia exatamente quem era o jovem rapaz por quem se encantara.

Clarice tinha agora certeza de que se tratava de um amor impossível, haja vista que Cristóvão de Melo era filho do maior inimigo de seu pai. Subiu correndo as escadas em direção a seu quarto, e pela janela chamou a mucama.

- Chica, suba já aqui! Quero falar-lhe.

- Sim sinhazinha já eu vou!

Ao chegar ao quarto, à mucama encontra Clarice sentada a escrivaninha, escrevendo algo.

- Veja Chica, quero que vá até a casa do senhor Ângelo de Melo e, entregue esta missiva a seu filho, o cavalheiro Cristóvão de Melo. Mas preste atenção: absolutamente ninguém, eu disse ninguém, poderá saber disto, apenas tu, Cristóvão e eu. Entendido?

- Sim sinhazinha, mas vosmicê não acha que está se arriscando por demais?

- Deixe de zelos Chica, faça logo o que lhe mandei!

Assim, mediante as instruções de Clarice, Chica ganhou da porta e se foi campo fora em direção à fazenda dos Melos, onde estava uma tropa de cavalariças farrapos.

-O que queres aqui escrava? – perguntou um dos cavaleiros.

- Tenho ordens de falar em particular com o cavalheiro Cristóvão de Melo.

- Mas quem pensas que és tu para teres particulares com um fidalgo? –continuou o cavaleiro.

- Ela é um ser humano, assim como tu e eu, e se é comigo que ela deseja falar, então que passe. E vós, deveis ter mais respeito aos teus irmãos, se lutas na causa farrapa é também porque desejas a igualdade. – interviu Cristóvão.

-Muito obrigado patrãozinho! – disse Chica.

- Diga em que te posso ajudar mulher.

 -Minha sinhazinha, mandou-me entregar-vos esta missiva, sobre instruções de ninguém mais saber disto.

- Quem é tua sinhá?

- Minha sinhazinha pede pra não ser revelada, apenas que lhe entregue o papel.

- Está bem, me entregue o documento.

Chica assim o fez, e retornou a casa dos Menezes.

Ao abrir o papel que Chica lhe entregara, Cristóvão leu o seguinte:

Piratiny, 14 de janeiro do ano da Graça de 1837.
“Prezado cavalheiro,

Sou aquela que de longe vira e ouvira a prova de vossa valentia em discursar em plena Praça. Desejo-vos ver para melhor conhecermo-nos, encontre-me atrás da Sé amanhã ás 15 horas.
 Com carinho,
C.M
PS.: Queime este papel, ninguém mais deverá saber.

Cristovam ficou ansioso em conhecer quem era a misteriosa senhorita, mas já desconfiava que fosse aquela moçuela do fim da multidão a quem vira mais cedo.

[...]

Farias, M.S. "Um conto farrapo" Agosto de 2012. http://livredialogo.blogspot.com.br/
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